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Direito médico-veterinário

Comportamento profissional doloso

Uma vergonha para a classe

Matéria escrita por:

José Alfredo Dallari Júnior

22 de mar de 2024

Créditos: Fotokita Créditos: Fotokita

Recentemente foi veiculado em um dos principais portais de notícias que: “Donos de uma Clínica Veterinária viraram réus e podem responder por cinco crimes”.

Algumas coisas devem ser ditas: primeiro, que uma denúncia é bem diferente de uma condenação, e nesse ponto a mídia divulga a denúncia, mas quase nunca mostra o desfecho do caso, principalmente quando o profissional é inocentado.

Segundo, que toda denúncia precisa ser muito bem analisada, devem ser verificadas as provas e buscada a verdade, pois cada um analisa o problema segundo sua visão – e, em certas situações, essa visão pode estar viciada.

No caso acima, a clínica foi denunciada por não dar a destinação adequada ao lixo hospitalar (seringas, agulhas, bolsas de sangue, peças cirúrgicas).

Também foi denunciada porque realizaria procedimentos desnecessários, inventados e majorados para “ganhar dinheiro”, assim como por cobrar por exames e procedimentos não realizados, deixando de fornecer os resultados aos tutores.

Depois dessa situação, recebi várias “consultas” relatando situações semelhantes, e algumas até mais escabrosas, pois falavam em fraudar laudos e resultados dos exames, em simular aplicação de vacinas e medicamentos, assim como relatavam internações desnecessárias e em condições inadequadas, além da retenção do paciente para garantir o pagamento das despesas.

Vamos analisar os pontos tecendo comentários, e o primeiro é que todo ato cometido por um profissional pode gerar danos e infrações legais, e um mesmo ato pode ser analisado e sofrer processo nas esferas administrativas no CRMV/CFMV, de acordo com o Código Civil na esfera civil e com o Código Penal na esfera penal. Em cada processo é necessário apresentar uma defesa técnica e de mérito, sendo de suma importância que o profissional seja orientado e assessorado por um advogado que conheça a rotina da clínica veterinária, em associação com um colega perito que atue como assistente técnico, pois isso ajuda muito na construção dos argumentos de defesa.

 

Destinação de lixo clínico infectante

Já é patente que cabe ao profissional/estabelecimento dar a destinação adequada ao seu lixo, e assim também é de responsabilidade profissional selecioná-lo e separá-lo.

Tal conduta evita a contaminação do meio ambiente e de pessoas. O descarte desse tipo de material deve seguir as normas rigorosas dos órgãos responsáveis, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), sendo que os médicos-veterinários também devem atentar para o Plano de Gerenciamento de Resíduos de Serviço de Saúde (PGRSS), obrigação estabelecida pela Resolução no. 1.275/2019 do CFMV.

É preciso seguir rigorosos padrões de qualidade e segurança para que o descarte de resíduos infectantes seja realizado com eficácia, ou seja, seguindo todos os procedimentos indicados pelos órgãos citados. Entre as medidas mais simples e que podem fazer grande diferença no dia a dia está a separação do lixo considerado infectante em sacos plásticos com a identificação indelével. Além disso, também deve contar com o símbolo universal de lixo infectante. 

Nesse ponto, também é importante dizer que desconhecer a legislação não é desculpa para deixar de cumpri-la. Todos os profissionais têm a obrigação de buscar esse conhecimento. A legislação é pública, e está disponível nos sites dos CRMV/CFMV. Por isso, busque informar-se.

 

Procedimentos desnecessários, inventados e majorados para “ganhar dinheiro”, procedimentos cobrados e não realizados, forja de atestados e de resultados

Para entrar nesses assuntos, bem como para analisar outras situações não apontadas neste artigo, é necessário definir “dolo e culpa”, ressaltando que é uma definição mais voltada ao direito penal, mas é conceito que permeia a interpretação dos atos da vida civil e administrativa.

No direito penal, dolo e culpa são dois conceitos distintos. No dolo a conduta é intencional, voluntária e com o objetivo de atingir certo resultado ilícito. Já na culpa, a conduta voluntária gera um dano involuntário devido a negligência, a imprudência ou a imperícia.

Em outras palavras, no dolo existe a vontade de provocar o dano (“quero fazer isso; mesmo sabendo ser ilegal, quero realizar o ato”), enquanto a culpa é a simples falta de diligência na ocorrência do dano, muitas vezes oriunda de um comportamento omisso, em que o agente não quer o dano, mas assume de certa forma os riscos do resultado.

Dessa feita, quando um crime é considerado doloso, tende a ser mais grave do que um crime culposo, e, assim, a condenação também é mais pesada. O exemplo clássico é em relação ao homicídio, em que doloso é aquele em que o agente quis matar a vítima, enquanto um homicídio culposo é aquele em que o agente não quis matar a vítima, mas acabou matando-a em função de uma ação que não objetivava aquele resultado. Um exemplo é o acidente de carro – claro que sem o uso de álcool e entorpecentes.

É importante também destacar o Art. 9o. da Resolução no. 1138/16 do CFMV, que diz: 

Art. 9º. – O médico-veterinário será responsabilizado pelos atos que, no exercício da profissão, praticar com dolo ou culpa, respondendo civil e penalmente pelas infrações éticas e ações que venham a causar dano ao paciente ou ao cliente e, principalmente;

I – praticar atos profissionais que caracterizem:
a) a imperícia;
b) a imprudência;
c) a negligência.

Nessa análise, fica patente que inventar procedimentos, atos, aplicar medicamentos ou não os aplicar e cobrar, assim como fraudar resultados de exames, são condutas dolosas, pois qualquer profissional sabe que são erradas e que estão fora das boas regras da profissão.

É importante diferenciar conduta dolosa de uma acusação por erro médico, conduta culposa, em que da conduta geralmente imprudente ou negligente advém um fato danoso ao paciente. Nesse caso, o profissional também responde por isso, mas não existe a intenção de prejudicar, o dolo.

Passamos agora a discutir outros pontos, e para tanto partiremos do Art. 8º. do nosso Código de Deontologia e Ética Profissional. 

Art. 8º. – É vedado ao médico-veterinário:
V – praticar atos que a lei defina como crime ou contravenção;
XI – deixar de fornecer ao cliente, quando solicitado, laudo médico-veterinário, relatório, prontuário, atestado, certificado, resultados de exames complementares, bem como deixar de dar explicações necessárias à sua compreensão;
XII – praticar qualquer ato que possa influenciar desfavoravelmente sobre a vontade do cliente e que venha a contribuir para o desprestígio da profissão;
XXI – prescrever ou executar qualquer ato que tenha a finalidade de favorecer transações desonestas ou fraudulentas;
XXXII – manter conduta incompatível com a medicina veterinária.

Quando o profissional forja um atestado ou o resultado de exames, ele está cometendo o crime de emissão de atestado falso (Art. 302º. do CP.

Art. 302º. – Dar o médico, no exercício da sua profissão, atestado falso.

Pena – detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano.

Parágrafo único: Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa.

O atestado é a afirmação da competência e da dignidade profissional. Dessa forma, ratificar por meio de assinatura informação falsa é crime contra a própria classe; é transgredir a liberdade profissional, causando dano civil, penal e ético.

É uma situação de desvalia do profissional que merece todas as críticas e penas estabelecidas para coibir tal atitude.

O termo “atestado” não se refere somente àqueles de saúde, mais a qualquer documento legal em que o profissional ateste, afirme uma situação, como laudos, resultados de exames, perícias, necropsias, etc., reforçando que a expressão “médico” nesse artigo também é elástica e alcança o médico-veterinário.

É importante frisar também que laudo ou perícia pode ter um uso judicial, em alguma ação em curso, e ser usado para induzir um juiz em erro. Nessa linha, é imperioso que o profissional tenha respeito e ética pela sua profissão e um cuidado redobrado, pois seu ato pode gerar um processo civil, penal e ético, cuja pena pode chegar até mesmo à perda do direito de exercer a profissão de médico-veterinário.

Outra vertente é a de que quando o profissional frauda um resultado de exame, ele também compromete o nome do laboratório que consta no resultado fraudado, gerando consequências legais também em relação ao ente lesado.

É necessário também apontar que existem entendimentos de que se trata de um tipo de estelionato, o famoso “171”, em referência ao número do artigo do Código Penal.

O estelionato é um crime que consiste em obter vantagem ilícita em detrimento de outra pessoa, utilizando-se de fraude ou artimanha. Ele é descrito no Código Penal Brasileiro como o ato de “obter, para si ou para outro, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”. A pena para a prática de estelionato pode ir de 1 a 5 anos, acrescida de multa. Trata-se da fraude na entrega de alguma coisa, pois com o ato o agente induz em erro quem recebe o documento, isso sem falar na perda de uma chance em relação ao tratamento.

Ainda nessa linha, o inciso XII do Art. 8º. da Resolução no. 1.138/2016 fala em praticar qualquer ato que possa influenciar desfavoravelmente a vontade do cliente e que venha a contribuir para o desprestígio da profissão.

Também está claro que fraudar um atestado ou laudo de exames influencia de forma desfavorável a vontade do cliente e também contribui para o desprestígio da profissão, que já recebe a pecha de mercenária.

Além disso, trata-se da execução de um ato que tem a finalidade de favorecer transações desonestas e fraudulentas (Inciso XXI), bem como é certamente uma conduta incompatível com a medicina veterinária (Inciso XXXII).

Ademais, inventar procedimentos para majorar ganhos também fere o Código de Defesa do Consumidor, bem como as boas regras das transações comerciais.

Um profissional que assim se comporte é uma vergonha para toda a classe e corre sérios riscos de ser condenado nas três esferas, podendo até mesmo ter seu título de médico-veterinário cassado, sendo impedido de atuar profissionalmente. 

 

Retenção de animal como garantia de pagamento

Dando continuidade, vamos falar sobre o tema mais fácil, o parágrafo único do Art. 17º. da Resolução no. 1.138/2016. O Código de Ética Profissional é claro e dispõe que:

Art. 17º. O médico-veterinário deve:
I – conhecer as normas que regulamentam a sua atividade;
II – cumprir contratos;
III – prestar seus serviços sem condicioná-los ao fornecimento de produtos ou serviços, exceto quando estritamente necessário para que a ação se complete;
IV – agir sem se beneficiar da fraqueza, ignorância, saúde, idade ou condição social do consumidor para impor-lhe produto ou diferenciar a qualidade de serviços.

Parágrafo único – É vedado ao médico-veterinário reter o paciente como garantia de pagamento. (Destaque nosso.)

O texto é claro e objetivo, e não carece de qualquer interpretação, ou seja: é vedado – e esse termo quer dizer “proibido” – reter o paciente como garantia de pagamento. Tal conduta consiste em infração ética; além disso, uma vez retido com esse fim, o profissional assume objetivamente qualquer coisa que aconteça com o paciente, e passa a ser obrigação sua medicá-lo, alimentá-lo e zelar pela sua sanidade; e, caso aconteça alguma coisa, será responsabilizado, sendo obrigado a ressarcir todo e qualquer gasto, e também a suportar os danos morais que advierem do acontecido.

Como exemplo, se um animal doente, em tratamento, vier a óbito durante o período em que está “preso” para forçar o pagamento, em cuja situação normal a responsabilidade do profissional precisaria ser comprovada, este será responsabilizado de forma objetiva.

O profissional já está errado de início e não tem como justificar sua atitude. Havendo qualquer denúncia, ele será responsabilizado.

 

Referências sugeridas

01-BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília: Planalto.gov, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm>. Acesso em 27 de fevereiro de 2024.

02-CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. Resolução nº 1138, de 16 de dezembro de 2016. Aprova o Código de Ética do Médico Veterinário. CFMV, 2016. 18 p. Disponível em: <http://ts.cfmv.gov.br/manual/arquivos/resolucao/1138.pdf>. Acesso em 27 de fevereiro de 2024.

03-DALLARI Jr., J. A. Direito Médico-veterinário. 1. ed. São Paulo: Recanto das Letras, 2021. 348 p. ISBN: 978-85-7142-105-9.

04-SOUZA, C. N. A. Análise de perícias por erro médico-veterinário e sua relevância para sentença. 2022. 99 f. Tese (Doutorado em Ciências) – Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.

05-CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. Resolução nº 1275, de 25 de junho de 2019. Conceitua e estabelece condições para o funcionamento de Estabelecimentos Médico-Veterinários de atendimento a animais de estimação de pequeno porte e dá outras providências. CFMV, 2019. Disponível em: <http://ts.cfmv.gov.br/manual/arquivos/resolucao/1275.pdf>. Acesso em 27 de fevereiro de 2024.

06-BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília: Planalto.gov, 1940. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em 27 de fevereiro de 2024.

07-BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília: Planalto.gov, 2002. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em 27 de fevereiro de 2024.

08-GIL, A. A. O Direito Médico-Veterinário e o Direito do consumidor. Migalhas, 2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/351406/o-direito-medico-veterinario-e-o-direito-do-consumidor>. Acesso em 27 de fevereiro de 2024.

 

 

 

 

 

 



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