
Abrigos de animais são locais de passagem onde são acolhidos animais abandonados, em risco ou que representam risco de zoonoses ou de acidentes por mordedura. Nesses locais, os animais devem ser reabilitados sanitária e comportamentalmente para, a partir daí, serem inseridos em lares com guarda responsável. Existem abrigos governamentais, os canis municipais dos Centros de Controle de Zoonoses ou similares, e os mantidos por organizações não governamentais. Há ainda uma terceira situação: residências, sem CNPJ, que abrigam dezenas ou até mesmo centenas de animais. Em todas essas possibilidades, é fundamental que haja organização para o perfeito funcionamento dos abrigos, bem-estar dos animais e adequadas condições de trabalho dos funcionários e/ou dos cuidadores.
No Brasil, ainda não há suficiente bibliografia especializada no tema, tampouco um levantamento quantitativo e qualitativo dos serviços oferecidos nesses estabelecimentos. No entanto, as inúmeras notícias de irregularidades podem constituir um bom indicativo da situação atual 1. Ainda que existam abrigos contituídos com o entendimento adequado e que realizem um trabalho árduo e diário com esses animais, com observância do seu bem-estar e com o intuito de realocá-los na sociedade, muitas são as denúncias de maus-tratos nesses estabelecimentos, sejam eles relativos a cães, gatos ou equinos. Entretanto, é notória a crescente preocupação por parte da sociedade quanto a essa realidade. A partir daí, os profissionais envolvidos devem a cada dia buscar maior capacitação nas áreas de etologia, medicina veterinária legal, epidemiologia e saúde pública, para atenderem com qualidade essa demanda.
O artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais, Lei n. 9.605/1998, tipifica como crime a prática de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, tendo como pena a detenção de três meses a um ano, além de multa. Em caso de morte do animal, a pena ianda pode ser aumentada de um terço a um sexto.
Maus-tratos, de acordo com o Artigo 136 do Código Penal Brasileiro, são definidos como o crime de quem expõe a perigo a vida ou a saúde de quem se encontra sob sua autoridade, guarda ou vigilância. Do ponto de vista técnico, maus-tratos podem ser definidos como as ações diretas ou indiretas caracterizadas por negligência, agressão ou qualquer outra forma de ameaça ao bem-estar de um indivíduo 2.
Alguns locais do Brasil têm ainda leis estaduais e municipais referentes à proteção animal em seus diversos níveis. Esses locais normalmente apresentam um número maior de denúncias, visto que população está mais sensibilizada quanto à causa animal e, por ter maior respaldo legal, consegue exigir providências e mudanças dos setores competentes.
Diante desse cenário, a simples retirada dos animais das ruas não implica necessariamente melhora do seu grau de bem-estar, visto que muitos abrigos não têm condições mínimas de se manter, por apresentarem superlotação, gerando graves problemas financeiros e ambientais, além de agravos sanitários, nutricionais e de comportamento a esses animais. Esse estabelecimentos muitas vezes não proporcionam atendimento veterinário adequado; os animais não passam por avaliação e remodelamento comportamental, e estão sujeitos a um ambiente estressante, com brigas constantes por territorialismo e disputa de alimento. Como agravantes, a adotabilidade é diminuída conforme o tempo que o animal permanece confinado nessas condições, e intensificam-se os problemas de saúde e emocionais, que passam a ser muitas vezes crônicos e irreversíveis 3.
Os estabelecimentos que têm animais sob sua responsabilidade devem seguir normas específicas.
Os abrigos normalmente concentram grandes quantidades de animais e um número reduzido de mão de obra. Nessas condições, frequentemente há necessidade de atendimento veterinário diário. Deve-se atentar para o fato de que somente os portadores de diplomas expedidos por escolas oficiais ou reconhecidas e registradas na Diretoria do Ensino Superior do Ministério da Educação e Cultura estão habilitados para a prática da clínica em todas as suas modalidade, além da capacitação para orientar, regulamentada pela Lei n. 5.517/1968. Dessa forma, a atuação de um responsável técnico nesses estabelecimentos é obrigatória.
De acordo com a resolução n. 592/1992, art. 1º, item XVI, firmas ou entidades que se dediquem, como atividade principal, à hospedagem de animais domésticos são obrigadas a registrar-se no Conselho Federal (CFMV) e no Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV) das cidades onde funcionarem. Ainda nessa mesma Resolução n. 592/1992, art. 3º, e na Resolução CFMV n. 1.041/2013, entidades sem fins lucrativos, reconhecidas como de utilidade pública, ficam isentas de taxas de inscrição e anuidades.
Os abrigos necessitam de alvará sanitário, por haver risco zoonótico e manipulação de medicamentos de uso controlado. Devem ainda seguir as normas estabelecidas segundo a Resolução n. 1.015/2012 do CFMV para o funcionamento de estabelecimentos médico-veterinários. Por exemplo, caso haja internamentos, é obrigatório manter no local um médico-veterinário e um auxiliar no período integral.
Quanto ao Programa de Gerenciamento de Resíduos de Serviços de Saúde, este deve conter critérios sobre a coleta e destinação final dos resíduos de saúde, elaborados pelo próprio abrigo e de acordo com os critérios estabelecidos pelos órgão de Vigilância Sanitária e Meio Ambiente, a quem cabe analisá-los e aprová-los.
Vale salientar ainda a necessidade de observância da responsabilidade ética, civil e penal dos profissionais envolvidos. A falta de atendimento veterinário adequado, seja por negligência, imprudência ou imperícia, configura crime previsto no Código de Ética do Médico-Veterinário e pode ter como penalidade advertência administrativa, multa ou até a cassação do registro profissional. Exemplos de documentos comumente negligenciados em abrigos são os prontuários, obrigação do médico-veterinário prevista no mesmo Código de Ética, Artigo 13º, inciso IX.
Considerando a importância da atuação direta do médico-veterinário em abrigos e na proteção animal, o CRMV-SP criou de modo pioneiro uma Comissão Técnica de Médicos-Veterinários de ONGs. Esse grupo de trabalho tem como objetivo analisar as demandas das ONGs de proteção animal e propor ideias e orientações visando a segurança, o bem-estar e a sanidade em mutirões de castração, abrigos e outras situações correlacionadas. Discute-se também a elaboração de um manual de orientações. A médica-veterinária sanitarista Vânia de Fátima Plaza Nunes, diretora técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal-SP e responsável técnica do Grupo de Voluntários para Valorização da Vida Animal, será a presidente da Comissão. O grupo é composto por mais cinco veterinários de outras instituições.
Animais abandonados vagando nas ruas são uma realidade desde tempos imemoriais. Recentemente, avanços nessa área se fizeram valer, como a proibição da eutanásia em massa de animais saudáveis. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1990, considerou que a eutanásia é um protocolo ineficaz para o controle populacional de animais. Além disso, a prática é também configurada como crime em todo o território brasileiro.
Enquanto houver abandono de animais, haverá animais nas ruas. Apesar de lógica, tal constatação não parece ser suficiente para promover as necessárias mudanças nos aspectos da cultura brasileira que alimentam o problema. Já está comprovado que o motivo maior de existirem animais abandonados é a procriação não assistida de animais semi-domiciliados e o abandono das crias indesejáveis nas ruas.
Diante disso, os abrigos foram pensados como uma possível solução do problema. Entretanto, a simples constatação da boa-fé dos responsáveis por esses abrigos não os exime de responsabilidade diante da lei penal. É necessário traçar um perfil do trabalho realizado no interior desses abrigos para então reunir dados concisos da realidade e das necessidades, viabilizando a elaboração de um manual ou um guia de procedimentos operacionais padrões para nortear as atividades desses estabelecimentos. Dessa forma, aos poucos conseguiremos estabelecer mudanças éticas que proporcionem dignidade e equilíbrio às pessoas que atuam nesse setor, além de obter importantes benefícios diretos para os animais e indiretos para a comunidade e para o meio ambiente como um todo.
Referências
1-CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar os fatos determinados como maus-tratos de animais – CPIANIM. Relatório Final. Brasil, 2015. 346 p.
2-MOLENTO, C. F. M. ; HAMMERSCHMIDT, J. Crueldade, maus-tratos e compaixão. Revista CFMV, Ano XXI, n. 66, p. 11, 2015.
3-WEIS, W. ; MOHAN-GIBBONS, H. Behavior evaluation, adoption, and follow-up. In: MILLER, L. ; ZAWISTOWSKI, S. Shelter medicine for veterinarians and staff. 2. ed. Iowa: Wiley-Blackweel, 2013. p. 531-540. ISSN: 978-081381993.