
Qual o significado das expressões “zooubiquidade”, “transbiopolítica” e “medicina translacional”? Esses termos são desdobramentos das novas abordagens da saúde única (transbiopolítica e biologia integrativa) e da medicina única (medicina comparada, medicina translacional e zooubiquidade), acompanhados dos avanços conceituais e práticos de cada um dos termos (Figura 1).

Figura 1 – Sinonímias das novas abordagens de saúde única e medicina única.
* Em português, não é correto utilizar o termo zoobiquidade, Quando se junta um prefixo a um substantivo, o prefixo pode perder a última vogal, mas o susbtantivo não (cf. Houaiss, Volp etc.). Por isso, o termo correto é zooubiquidade
O termo “zooubiquidade” (zoobiquity) tem sido o mais discutido, sendo um neologismo oriundo da junção do prefixo “zoo” (relativo aos animais) com a palavra “ubiquidade” (o que está em toda parte, ao mesmo tempo) 1. Criada em 2011, a Conferência de Zooubiquidade (http://www.zoobiquity.com) parte deste fato simples, mas revelador: os animais e as pessoas têm muitas doenças em comum, embora os médicos e os médicos-veterinários raramente consultem uns aos outors. Nesse cenário, a zooubiquidade explora abordagens comuns entre animais e seres humanos que podem ser utilizadas para diagnosticar, tratar e curar pacientes de todas as espécies, numa proposta interdisciplinar integrada da saúde física e comportamental. O termo é o título do livro da dra. Natterson-Horowitz, cardiologista e professora da Universidade da Califórnia que faz parte de uma equipe multidisciplinar de consultores do Zoológico de Los Angeles (Figura 2).
O livro Zoobiquity (Zooubiquidade) expõe que na ciência – particularmente na biologia e na medicina –, todas as espécies animais são muito mais próximas do que imaginamos, e isso inevitavelmente combina o conhecimento da medicina e da medicina veterinária. Os casos clínicos discutidos no livro mostram a abordagem da ciência médica ubíqua, ou melhor, “zooubíqua”, na qual médicos-veterinários e médicos deveriam atuar na mesma interface, buscando desvendar os complexos problemas comportamentais, sociais e de saúde comuns aos animais e aos seres humanos. Embora a abordagem seja relativamente nova entre os médicos, muitos tópicos já são antigos conhecidos dos médicos-veterinários, como o fato de as cadelas poderem ser acometidas por câncer de mama, os gorilas poderem sofrer de depressão clínica, diferente espécies animais utilizarem plantas para se automedicar, incluindo alucinógenos, para se sentirem mentamente melhor, os rinocerontes poderem desenvolver leucemia, e até mesmo alguns animais poderem cometer suicídio, especialmente aqueles acometidos com infecções parasitárias terminais.
Outro termo também muito utilizado é “medicina comparada”, principalmente no ramo da ciência que estuda essas relações no ambiente acadêmico. Embora esteja agora em evidência, trata-se de um termo também muito antigo, já tendo sido empregado desde o início do século XX 2. Igualmente, medicina única é outro conceito mais globalizado e parecido com o da zooubiquidade e da medicina comparada, imediatamente mais assimilável para médicos e médicos-veterinários.
Nesse sentido, o termo “medicina única” pode ser utilizado mais precisamente de duas formas: 1) designar a pesquisa epidemiológica, laboratorial e clínica das doenças transmissíveis ou contagiosas que afetam os seres humanos e os animais; 2) definir a estratégia de emprego do conhecimento adquirido no tratamento e nas investigações médicas de animais que adoecem espontaneamente como modelos para doenças que ocorrem em seres humanos ou vice-versa, ou seja, a transferência, ou transporte ou “translado” de conhecimento clínico, terapêutico ou cirúrgico sobre certas doenças ou síndromes que acometem os seres humanos, transferida para certas espécies de animais. Dessa translação do conhecimento se origina outro sinônimo do termos medicina única empregado por muitos pesquisadores: a “medicina translacional”.
Na medicina única, as especialidade de clínica médica e cirúrgica de pequenos animais se destacam, uma vez que seres humanos e animais de companhia (cães e gatos) compartilham um ambiente muito parecido, sofrem com agentes estressores semelhantes e ainda apresentam muitos traços genéticos em comum 3. Em menor grau, o mesmo pode ser verdadeiro para outras espécies animais, particulamente animais de produção. Um dos pilares da evolução das espécies é que todos os organismos vivos apresentam um antepassado comum, e isso é evidenciado pela área da biologia molecular. Esse conceito também originou a expressão menos comum “medicina evolutiva” (do inglês evolutionary medicine), por vezes denominada “medicina darwiniana”.
A grande importância da ação do médico-veterinário na medicina única foi modernamente consagrada na comunidade científica internacional em 2005 pelo Comitê de Necessidade de Pesquisa em Ciências Veterinárias do Conselho Estadunidense de Pesquisa (National Research Council – US: Committee on the National Needs for Research in Veterinary Science). Esse importante relatório reconheceu a área médica como uma área que tem muito a ganhar com o progresso da medicina veterinária, e também a carência de um número maior de cientístas envolvidos na investigação veterinária em todo o mundo 4. O relatório ainda concluiu que há necessidade urgente de fornecer recursos adequados para os investigadores veterinários, tendo como objetivo a elaboração de instalações e programas de treinamento para que a sociedade como um todo se beneficie disso.
Muitos cursos de pós-graduação de universidades estadunidenses e europeias já preocupadas em formar profissionais com essa filosofia criaram programa com essa abordagem integrativa. Desses, destacam-se os programa de medicina comparada e biologia integrada da Universidade Estadual de Michigan (Michigan State University), medicina comparada e veterinária da Universidade Estadual de Ohio (Ohio State University), patobiologia comparada da Universidade de Purdue (Purdue University) e da Universidade de Cambridge (Cambridge University, Reino Unido), além dos Programas de Medicina Comparada das universidades da Califórnia (UC Davis), Stanford, Yale, Maryland, Tennessee e Wake Forest. As universidades dos estados do Colorado e da Pensilvânia possuem inclusive programas de residência médica na área de medicina comparada.
Quanto às definições e áreas de atuação, a zooubiquidade e a medicina única (bem como seus sinônimos, medicina translacional, medicina comparada e medicina evolutiva) sofreram claras intersecções e por vezes são termos intercambiáveis, sendo portanto considerados termos equivalentes.
A definição mais purista do termos “medicina única” exclui áreas não médicas como urbanismo, ecologia, meio ambiente ou biodefesa. Isso porque, embora as expressões “saúde econônica” ou “saúde do meio ambiente” (“saúde ambiental”) façam sentido e sejam concebíveis, os termos “medicina do meio ambiente” ou “medicina ambiental” não têm claramente essas designações.
Tanto a saúde ambiental como a medicina única são parte de um conceito maior, denominado saúde única. O termos “saúde única” veio da tradução da expressão “one health” da língua inglesa, e já vinha sendo discutido ativamente por Rudolf Virchow (1821-1902), um médico alemão considerado o pai da patologia moderna e da medicina social 5. No entanto, a disseminação moderna do conceito tem sido atribuída a Calvin W. Schwabe (1927-2006), médico-veterinário estadunidense considerado o pai da epidemiologia veterinária 5. Variações do termo também empregadas internacionalmente seriam a “biologia integrativa” (do inglês integrative biology) e a simpática expressão “guarda-chuva da saúde única”(do inglês one health umbrella), cunhada por Gibbs 6 (Figura 3).
A saúde única é indubitavelmente multiprofissional, abrangente, amplamente debatida, tornando-se uma área específica de atuação profissional e compondo inclusive disciplina acadêmica organizada e aceita pela comunidade científica mundial. Em termos práticos, o profissional de saúde única atua na interface animal/homem investigando as várias conexões (por vezes críticas) entre sociedade, zoonoses emergentes, saúde pública, arquitetura, urbanismo, economia, segurança dos alimentos, biodefesa, doenças dos seres humanos e dos animais domésticos e selvagens, e ainda conservação do meio ambiente.
No Brasil, o médico-veterinário contribui com a saúde única no escopo do trabalho da atenção básica à saúde da Família (NASF), contemplados na Portaria m. 2.488 de 21 de outubro de 2011, que aprova a política nacional de atenção básica para o Sistema Único de Saúde (SUS). Tal inclusão reconhece que o médico-veterinário é um profissional que reúne formação e habilidades ímpares e extremamente apropriadas para agir nos complexos tópicos relacionados nas seguintes interfaces: saúde da família/comunidade/animais/meio ambiente 7.
Finalmente, outro neologismo tem sido empregado na abordagem das relações entre todas as formas de vida que compõem um sistema aberto, dinâmico e cujos efeitos podem frequentemente confundir nossas tentativas de lhes dar sentido. O termo “transbiopolítica”) do inglês, transbiopolitics), uma junção do prefixo “trans-” (relativo à transgressão de fronteiras) com a expressão “biopolítica”, utilizada para definir as imbricações entre sociedade e biologia 8, vem sendo utilizado para definir especificamente as complexas relações existente entre animais, seres humanos e o meio ambiente em que vivem. Por conceito, a transbiopolítica reflete a complexidade das relações entre as diferentes formas de vida e o habitat de cada uma delas, mas inclui ainda a dinâmica da ação do homem na natureza, por meio do estudo da devastação, e das transgressões dos limites, fronteiras e barreiras naturais permitidas pelos sistemas científicos e tecnológicos modernos de alcance global, como viagens e comércio intercontinental.
“Transbiopolítica” talvez seja o mais recente dentre todos os outros termos aqui apresentados, e foi introduzido por Gwendolyn Blue e Melanie Rock em 2010, numa tentativa de elucidar o fato de que os animais, os seres humanos e todas as formas de vida não apenas coexistem, mas são fundamentais e interdependentes na constituição um do outro em diferentes níveis 9. Em suma, de modo equivalente, mas não idêntico ao da saúde única, a expressão “transbiopolítica” trata de todos os tipos de relações entre seres humanos e as formas de vida não humanas, mas aborda uma de suas ramificações mais preocupantes: a política. Foucault costumava citar uma frase atribuída a Aristóteles quando definia a biopolítica: “O homem é apenas mais um ser vivo, com a capacidade adicional de existência política” 10.
Os conceitos de saúde única e de transbiopolítica reconhecem que a saúde dos seres humanos está conectada com a saúde dos animais e do meio ambiente, ou seja, a saúde de um ser vivo está condicionada à saúde dos demais, e consequentemente, de todo o planeta. Portanto, as expressões “saúde única” e “transbiopolítica” são claramente intercambiáveis, pois englobam a saúde ambiental.
As inter-relações entre as diferentes definições de saúde aqui discutidas podem ser sumirazadas numa representação esquemática produzida pela organização Saúde Única da Suécia (http://www.onehealthinitiative.com), cujo conteúdo foi modificado e adaptado para a realidade brasileira (Figura 3).
Em resumo, a saúde pública, cuja história tem sido afetada pela ação biofóbica do homem sobre as espécies animais, vegetais e o meio ambiente, tem o desafio de abandonar essa antiga visão antropocêntrica e passar a se integrar com as ciências naturais em busca de experiências e conhecimentos a compartilhar. Para tanto, fica cada vez mais nítida a necessidade de um profissional capacitado para fazer esse translado científico: o médico-veterinário.
“Os muito inteligentes que não se envolvem na política são punidos por serem governados por aqueles que são mais ignorantes” (Platão – 427-347 a.C.).
Referências
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