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Parando de “matar cachorro a grito”

A situação da leishmaniose visceral (LV) canina no Brasil tem levado milhares de cães à morte todos os anos, sem o devido respaldo técnico-científico e sem nenhum impacto na incidência da enfermidade

Hora de revermos o diagnóstico da leishmaniose visceral canina no Brasil. Créditos: Fernando Gonsales Hora de revermos o diagnóstico da leishmaniose visceral canina no Brasil. Créditos: Fernando Gonsales

No I Encontro Brasileiro de Protozoologia Veterinária, realizado em Londrina, PR, nos dias 26 e 27 de novembro de 2015, um dos participantes comentou, durante o módulo sobre leishmaniose canina e seus encaminhamentos, que ainda hoje no Brasil “matamos cachorro a grito”. A expressão “matar cachorro a grito” significa estar em um beco sem saída ou em situação de grande dificuldade. Apesar de ser apenas uma expressão popular, os médicos-veterinários brasileiros continuam “matando cachorro a grito”, ou seja, estão em um beco sem saída em relação ao diagnóstico e ao manejo da leishmaniose visceral canina (LCV). Essa situação histórica tem levado milhares de cães à morte todos os anos, sem o devido respaldo técnico-científico e sem nenhum impacto na incidência da leishmaniose visceral (LV) no país.

A LV é uma zoonose de grande importância para a saúde pública e de alta ocorrência na América Latina, principalmente em regiões urbanas e periurbanas. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) revelam que essa severa doença ocasiona anualmente entre 20 mil e 40 mil mortes em todo o mundo. No Brasil, a enfermidade é causada pelo protozoário Leishmania infantum (= Leishmania chagasi), transmitido por flebotomíneos, primariamente da espécie Lutzomina longipalpis, sendo os cães os principais reservatórios no ambiente doméstico 1.

Apesar de todo o esforço feito na última década, o número de casos de LV em todo o país vem crescendo. Foram verificados inclusive os primeiros casos autóctones em localidades até então consideradas livres da doença, como as ocorrências recentes de LV canina e humana em Foz do Iguaçu, PR, em 2015. Esse processo tem sido atribuído principalmente à descontinuidade das ações de controle, além de modificações ambientais e climáticas que favorecem a adaptação do vetor, da migração da população humana e canina para espaços urbanos e de fatores imunossupressivos 2. Nesse cenário, uma abordagem diagnóstica confiável, rápida e acessível é imprescindível para a identificação do perfil epidemiológico da doença, norteando tecnicamente a adoção de medidas efetivas de prevenção e controle.

O Ministérios da Saúde (MS) considera os sinais clínicos da LVC apenas como suspeita, pois o Programa de Vigilância e Controle de Leishmaniose (PVCL) estabelece a utilização de métodos sorológicos de imunocromatografia (Teste Rápido Dual Path Plataform – TR DP® Leishmaniose Visceral Canina) como triagem, e o ensaio imunoenzimático (Elisa – Bio-Manguinhos) como confirmatório 3,4. Entretanto, muitos questionam o uso desses testes como critérios diagnóstico para a recomendação da eutanásia de cães, devido à possibilidade de reações cruzadas com outro patógenos, como relatado em vários estudos nacionais e internacionais 5-7

Enquanto isso, vários países europeus vêm realizando um grande esforço para que os médicos-veterinários tenham à sua disposição as melhores ferramentas para o diagnóstico, o tratamento e a prevenção da LVC, facilitando inclusive as ações oficiais de controle e melhorando a aceitação dos proprietários de cães em relação às medidas a serem adotadas caso os resultados sejam positivos. Assim sendo, apesar de toda a polêmica atual existente no Brasil, há um consenso científico internacional para a abordagem diagnóstica, a classificação clínica, o tratamento e a prevenção da LVC 8. Esse consenso vem sendo adotado com sucesso em vários países onde a LV também é um sério problema de saúde pública, como Itália, França e Espanha.

O diagnóstico na Europa tem se baseado em uma abordagem integrada que envolve a descrição detalhada do histórico, dos sinais clínicos e das alterações laboratoriais, associada à confirmação do diagnóstico por meio de testes parasitológicos, sorológicos e/ou moleculares. Com base nesses dados, os cães infectados por L. infantum são divididos em dois grupos: 1) cães com LCV (ou seja, cães infectados com sinais clínicos e/ou alterações clinicopatológicas compatíveis com LVC) e 2) cães assintomáticos (cães infectados por L. infantum, porém sem sinais clínicos e/ou alterações clinicopatológicas compatíveis com LVC). Todo o manejo dos cães infectados por L. infantum se baseia na presença (e na severidade) ou na ausência de sinais clínicos e/ou alterações clinicopatológicas 8.

Recomenda-se que na rotina clínica, a citologia de amostras provenientes de punção aspirativa de linfonodos, medula óssea ou até mesmo baço seja realizada em casos suspeitos, uma vez que essa técnica permite em muitos casos o diagnóstico definitivo da infecção por L. infantum. Apesar da sua simplicidade e de seu uso rotineiro na Europa, esse método direto de deteção nem sempre é utilizado no Brasil, talvez em parte devido à falta de treinamento adequado dos profissionais para a obtenção das amostras e para a identificação de formas amastigotas de Leishmania. Caso seja evidenciada a presença dessas formas, o cão é considerado infectado. Em amostras citológicas negativas, outros testes devem ser solicitados, conforme ilustrado na figura 1.

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Figura 1 – Algoritmo de abordagem diagnóstica para cães com suspeita clínica ou alterações clinicopatológicas coerentes com leishmaniose visceral canina (LVC). Adaptado8

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Pelos métodos sorológicos quantitativos, como Elisa e Rifi, os casos são confirmados quando os testes evidenciam altos títulos de anticorpos (quatro vezes ou mais que o ponto de corte). Porém, se o animal apresenta um baixo título de anticorpos, sobretudo na ausência de sinais clínicos, há necessidade de outros testes para que a infecção se confirme. Podem-se utilizar testes rápidos baseados no método de imunocromatografia e Elisa, mas com cautela, pois os cães com baixos títulos de anticorpos podem apresentar resultados falso-negativos. Ademais, esses testes não fornecem dados quantitativos, que são de grande valia para a confirmação diagnóstica.

Ainda de acordo com o consenso do grupo LeishVet, pode-se realizar biópsia cutânea para detecção histológica do parasita em cães suspeitos que apresentam lesões cutâneas. A imuno-histoquímica pode ser realizada quando a análise histológica de rotina não revelar o parasito. Quando o resultado desse segundo teste também for negativo, deve-se recomendar o uso de testes moleculares para detecção de DNA de L. infantum em amostras de tecido cutâneo lesionado, medula óssea, linfonodo ou baço como exames confirmatórios. Já em animais sem alterações cutâneas mas com sinais sistêmicos sugestivo de LVC, deve-se realizar a PCR em amostras de medula óssea e linfonodos reativos onde exista uma maior probabilidade de detecção do DNA do parasito.

Quando um cão apresentar resultados negativos na PCR, citologia negativa e baixo título de anticorpos na Rifi, por exemplo, considera-se que o animal entrou em contato com o agente, porém o quadro clínico apresentado pode estar relacionado a outra enfermidade. Se a análise molecular for positiva, porém, o quadro clínico apresentado por estar relacionado a outra enfermidade. Se a análise molecular for positiva, mesmo com citologia negativa e sorologia com baixo título, o animal pode apresentar sintomatologia clínica decorrente de outra enfermidade, porém deve ser considerado como infectado por L. infantum.

Apesar de parecer simples demais para ser verdade, esse algoritmo europeu da LCV ajuda na tomada de decisão, mesmo quando aplicado na maioria das polêmicas atuais no Brasil. Dessa forma, os exames citológicos, molecular e sorológico combinados auxiliam a estabelecer clara e objetivamente o diagnóstico definitivo da LVC.

Devido ao conflito diagnóstico e pós-diagnóstico da LVC, tem sido crescente o número de processos judiciais contra as atuais recomendações do MS (Figura 2). O Ministério Público e outras instâncias judiciais, inclusive, determinaram a proibição da eutanásia dos animais positivos9 e optaram pela manutenção de cães positivos em áreas livres do veto, pelo tratamento dos animais infectados e pelo uso de vacinas e outros produtos não liberados pelo MS. Essa “judicialização” da LVC no Brasil não tem precedentes e evidencia a lacuna e a desatualização do respaldo diagnóstico e do encaminhamento de animais positivos, abrindo espaço para constantes questionamentos da sociedade.

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Ano Instância Ação Abrangência Resultado
2012 2ª Vara Cível de Mossoró Impediu a eutanásia do cão Mossoró, RN Autorizou a eutanásia pelo CCZ após duas contraprovas positivas
2013 TRF da 3ª Região Proibiu a eutanásia de cães Campo Grande, MS Em vigência
2013 TRF da 3ª Região, SP Declarou ilegal a portaria 1.426/08 e autorizou o tratamento Brasil Em vigência.
CFMV manteve a orientação contrária à determinação
2014 TJ, Goiás Impediu a eutanásia do cão Goiás Direito de realizar novos exames
2015 TJ, Mato Grosso do Sul Impediu a eutanásia do cão, que tratado, apresentou resultado indeterminado Campo Grande, MS Guarda domiciliar em isolamento até que novos exames sejam feitos
2015 TJ, Goiás Impediu a eutanásia do cão Goiás Perícia concluiu como falso positivo
2015 15º PJ de DMA / Cuiabá Proibiu a eutanásia de cães Cuiabá, MT Em vigência

Figura 2 – Processos judiciais impetrados recentemente contra as recomendações do Ministério da Saúde para a leishmaniose visceral canina no Brasil, demonstrando o processo de judicialização da doença nos cães (Fonte: Internet, 2025)

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Para um diagnóstico adequado, o valor utilizado para o ponto de corte, o título de anticorpos (Rifi) e/ou a densidade óptica (DO) (Elisa) devem ser exigidos dos laboratórios pelo médico-veterinário requerente, o que nem sempre acontece, favorecendo os questionamentos posteriores. Desse modo, quando o título de anticorpos ou DO de um cão for quatro vezes ou maior que o ponto de corte (e.g., ponte de corte de 1:80 na Rifi e o animal apresenta um título de 1:320), o animal é considerado positivo com um alto título de anticorpos. Esse resultado é o considerado confirmatório em cães com sinais clínicos ou alterações clinicopatológicas.

A amostra de título ou DO acima, mas menor que quatro vezes o ponto de corte, é considerada positiva com baixo título de anticorpos e deve ser submetida a métodos adicionais para confirmação do diagnóstico de LVC. Nesse sentido, os laudos atualmente disponibilizados no Brasil com resultado apenas qualitativos (reagente/não reagente) são insuficientes para estabelecer um diagnóstico definitivo de LVC, e para a tomada de decisão em relação ao caso, levando por vezes à eutanásia errônea dos cães.

Embora outros pontos – como a eutanásia de animais positivos e a liberação do tratamento – ainda sejam muito polêmicos, um ponto crucial da LVC no Brasil atualmente parece ser mesmo o estabelecimento de um diagnóstico preciso, feito com todas as ferramentas diagnósticas disponíveis, que respalde a tomada de decisão, seja na clínica veterinária, seja no âmbito da saúde pública. É preciso estabelecer uma diretriz governamental diagnóstica apropriada, com encaminhamentos baseados em evidências científicas nacionais e internacionais, colocando de uma vez por todas um fim à polêmica e à morte de cães “a grito”.

 

Referências

1-BRASIL, MINISTÉTIO DA SAÚDE. Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral. 1. ed. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2006. 120 p. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_vigilancia_controle_leishmaniose_visceral.pdf.

2-WERNECK, G. L. Expansão geográfica da leishmaniose visceral no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 26, n. 4, p. 644-645, 2010. Doi: 10.1590/S0102-311X2010000400001.

3-BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE. Esclarecimentos sobre o diagnóstico sorológico da leishmaniose visceral canina utilizado na rede pública de saúde. Nota Técnica nº /2011 – UVR/CGDT/DEVEP/SVS/MS. Secretaria de Vigilância em Saúde. Subcoordenação de Zoonoses Vetoriais e Raiva. Brasília, 2011. 

4-PEREIRA, L. R. M. Atuação do Ministérios Público direcionada ao Programa de Vigilância da Leishmaniose Visceral no contexto das ações de controle do reservatório da espécie canina. 2010. 131 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Saúde Pública) – Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2010.

5-PINTO, A. J. W. ; RIBEIRO, V. M. O diagnóstico da leishmaniose visceral canina nos serviços público e privado. Clínica Veterinária, Ano XX, n. 118, p. 60-62, 2015.

6-LAURENTI, M. D. ; DE SANTANA LEANDRO, M. V. Jr. ; TOMOKANE, T. Y. ; DE LUCCA, H. R. ; ASCHAR, M. ; SOUZA, C. S. ; SILVA, R. M. ; MARCONDES, M. ; MATTA, V. L. Comparative evaluation of the DPP CVL rapid test for canine serodiagnosis in area of visceral leishmaniasis. Veterinary Parasitology, v. 205, n. 3-4, p. 44-450, 2014. Doi: 10.1016/j.vetpar.2014.09.002.

7-ZANETTE, M. F. ; LIMA, V. M. F. ; LAURENTI, M. D. ; ROSSI, C. N. ; VIDES, J. P. ; VIEIRA, R. F. C. ; BIONDO, A. W. ; MARCONDES, M. ; serological cross-reactivity of Trypanosoma cruzi, Ehrlichia canis, Toxoplasma gondii, Neospora caninum and Babesia canis to Leishmania infantum chagasi tests in dogs. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 47, n. 1, p. 105-107, 2014. Doi: 10.1590/0037-8682-1723-2013.

8-SOLANO-GALLEGO, L. ; MIRÓ, G. ; KOUTINAS, A. ; CARDOSO, L. ; PENNISI, M. G. ; FERRER, L. ; BOURDEAU, P. ; OLIVA, G. ; BANETH, L. LeishVet guidelines for the practical management of canine leishmaniosis. Parasites & Vectors, v. 4, n. 1, p. 86, 2011. Doi: 10.1186/1756-3305-4-86.

9-TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO. Agravo de Instrumento n. 0012795-50.2010.4.03.0000/MS, 2015.