O médico-veterinário e a notificação de violência
Animal não é brinquedo. Sente fome, frio e medo. Esteja atento à violência doméstica

Os médicos-veterinários exercem um papel de grande relevância em diversos contextos da saúde pública, estando historicamente mais consolidados em temas como controle de zoonoses, vigilância sanitária e inspeção de produtos de origem animal. Entretanto, o seu amplo campo de atuação profissional permite uma contribuição efetiva na identificação e notificação de um tipo de agravo apenas recentemente incluído na lista de notificação compulsória relativa à saúde pública: a violência.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define violência como: “o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação” 1. Apesar de a OMS não citar atos de violência humana contra animais em seus relatórios, vários estudos já confirmam a íntima relação entre os maus-tratos contra animais e a violência doméstica. Maltratar animais não é mais visto como um incidente isolado que pode ser ignorado: é muitas vezes um indicador de crime ou um sinal de aviso ou “bandeira vermelha” para os membros da família, sinalizando que o lar pode não ser seguro 2.
E como pode se dar a contribuição do médico-veterinário nesse agravo?
Em 2011, o Ministério da Saúde (MS) incluiu “violência doméstica, sexual e/ou outras violências” entre os agravos a serem notificados obrigatoriamente pelos profissionais de saúde (Portaria n. 104/2011 do Ministério da Saúde) 3. Nota-se que o objetivo da norma é a identificação e a prevenção de todas as formas de violência, não havendo nem mesmo necessidade de sua comprovação para a notificação – basta a mera suspeita. A referida portaria vincula todos os profissionais de saúde como agentes responsáveis pelas notificações, incluindo os médicos-veterinários 4.
O médico-veterinário pode atuar junto às equipes de saúde através dos núcleos de apoio à saúde da família (Nasf) promovendo apoio matricial nos casos de suspeita e/ou confirmação de abuso ou maus-tratos contra animais. O veterinário pode buscar apoio compartilhado para uma intervenção interdisciplinar e intersetorial tanto para troca de saberes e capacitação quanto para atuação junto a órgãos diversos como: setores de saúde, clínica veterinária, escolas, serviços sociais e justiça, todos com responsabilidades mútuas. Ao lidar com o problema da violência, cada setor tem um papel importante a desempenhar, e, coletivamente, a abordagem adotada por cada um deles tem potencial para produzir importantes reduções na violência 5.
Dois pontos a ser considerados são a criação de um modelo de notificação de suspeita e/ou confirmação de maus-tratos a animais e o encaminhamento dessas notificações para os serviços de saúde competentes, para o acompanhamento familiar e para facilitar os possíveis desdobramentos legais. Nesse caso, tanto os médicos-veterinários inseridos em órgãos públicos quanto aqueles cuja área de ação é o setor privado – mais especificamente os que atendem os animais em clínicas – contribuiriam de maneira significativa para a identificação dos casos, a coleta de informações, o diagnóstico precoce das situações suspeitas e a notificação às autoridades competentes – e, consequentemente, para a prevenção da violência doméstica. Para tanto, é necessária a superação da dificuldade do médico-veterinário em identificar a violência contra animais, seja pela análise de lesões não acidentais, seja pelo seu conhecimento do comportamento animal, entre outros, em seu contato rotineiro com os pacientes 6.
Diante desse contexto, impõe-se uma reflexão sobre a importância da atuação do médico-veterinário nos casos de violência e sobre as diversas adequações que ainda serão necessárias até que ele contribua efetivamente nesse campo, a saber: mudanças da percepção da interligação entre violência doméstica e maus-tratos aos animais por parte da sociedade e dos próprios profissionais de saúde; elaboração de meios de formalizar essas ocorrências; capacitação do médico-veterinário no âmbito de saúde pública, medicina veterinária legal e bem-estar animal – disciplinas essas pouco exploradas na graduação, mas que contribuem de forma significativa para a competência do profissional no enfrentamento das novas demandas da sociedade.
Vale ainda refletir sobre o conceito de “família” e “violência doméstica” cujos atores são estritamente humanos – principalmente após termos o conhecimento de que no Brasil os animais de estimação que vivem sob o mesmo teto que os seres humanos já passam de 100 milhões, segundo os dados da Associação Brasileira da Industria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet) 7.
Portanto, quando se falar em violência doméstica, sugere-se que esteja subentendida a violência contra todas as formas de vida que coabitam aquele lar. Contesta-se a visão reducionista e inquestionável da violência, particularizada e delimitada à relação entre seres humanos e à esfera privada, e amplia-se a discussão para considerar que a violência é contra a vida e que deve, como tal, ser tratada como coisa pública 6.
Referências
1-WHO GLOBAL CONSULTATION ON VIOLENCE ANDE HEALTH. Violence: a public health priority. Geneva: World Health Organization, 1996. 36 p.
2-NATIONAL LINK COALITION. The link. http://nationallinkcoalition.org/
3-MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria n. 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme o disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005), a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelece fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt0104_25_01_2011.html
4-BARROS, D. M. Notificação compulsória de violência – implicações em saúde mental. Revista de Psiquiatria Clínica, v. 38, n. 4, p. 125, 2011. ISSN: 0101-6083.
5-OPAS/OMS. Relatório mundial sobre a violência e saúde. Genebra: 2002. http://www.opas.org.br/wp-content/uploads/2015/09/relatorio-mundial-violencia-saude.pdf
6-FARACO, C. B. ; SEMINOTTI, N. A crueldade com animais: como identificar seus sinais? O médico-veterinário e a prevenção da violência doméstica. Revista CFMV, v. 37, p. 66-71, 2006.
7-Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação. http://abinpet.org.br/site/?s=100+milh%C3%B5es+de+animais+estima%C3%A7%C3%A3o+#