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Neurociência e proteção animal

Matéria escrita por:

Ingrid Bueno Atayde, Sérvio Túlio Jacinto Reis

12 de nov de 2016

Hoje, a neurociência permite que cães sejam comparados a crianças de até 3 anos. Créditos: a katz Hoje, a neurociência permite que cães sejam comparados a crianças de até 3 anos. Créditos: a katz

O que há em comum entre o Estatuto da Criança e do Adolescente e as leis que regem a proteção animal? Em uma comparação básica podemos fazer analogias e perceber semelhanças por se tratarem de legislações que protegem seres vulneráveis, incapazes de falar por si e que precisam de adultos que por eles se responsabilizem. E o que há de neurociência em tudo isso? Há neurociência a partir do momento em que tentamos compreender o interior de outros seres, humanos ou não, para julgar o que, no caso deles, pode ser considerado como violência e o que se configura como respeito.

Podemos ouvir da criança e do adolescente palavras e expressões que nos lembram que já estivemos nesses estágios em algum momento de nossas vidas. Há que se concordar que as lembranças são antigas e vagas, e, mesmo com toda a empatia possível, são apenas imagens revisitadas. No caso dos animais, porém, não temos nem mesmo esse recurso da memória, temos apenas a empatia.

A proteção animal hoje, no Brasil, encontra-se expressa basicamente no Artigo 225 da Constituição Federal e na Lei de Crimes Ambientais – Lei 9.605/98, que contêm avanços se comparadas às legislações de outros países, mas ainda guardam certa visão antropocêntrica da época em que foram criadas. Alguns juristas já buscam em suas decisões respeitar o conhecimento da senciência animal, a exemplo do juiz Leandro Katscharowski Aguiar, titular da 7ª Vara Cível da comarca de Joinville, que declinou competência em favor de uma das Varas da Família em um caso de disputa pela guarda de uma cadela no curso de processo de divórcio, “sob o entendimento de que os animais de estimação já estão por merecer tratamento jurídico distinto daquele conferido a um simples objeto”. Também cabe mencionar o voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, em decisão recente que considerou inconstitucional a prática da vaquejada: “Embora ainda não se reconheça a titularidade de direitos jurídicos aos animais, como seres sencientes, têm eles pelo menos o direito moral de não serem submetidos à crueldade” (STF, ADI 4.983, Rel. Ministro Marco Aurélio Mello). Ainda assim, muito há que ser visto não apenas na adequação das leis, mas também na garantia de sua aplicação, um problema visto em todas as esferas do Direito no Brasil. 

Na tentativa de discernimento do que forma o self de humanos ou não humanos, acabamos chegando aos níveis básicos de consciência e sentimentos, conseguindo algum balizamento por meio das neurociências: temos uma janela de acesso. No entanto, o segundo aspecto comum não é nada positivo: os diplomas não têm considerado os insights e inferências advindos da neurociência para basear suas regulações, como visto recentemente no caso da redução da maioridade penal. O cérebro humano está plenamente desenvolvido em suas faculdades de discernimento, planejamento e compreensão de consequências por volta dos 25 anos de idade. Antes desse marco, o cérebro opera no modo dos ensinamentos morais, punições e reforços, contra os quais se rebela por estarem os jovens em pleno momento de desafiar limites e criar experiências e regras próprias. Diminuir a maioridade penal apenas reforça o sistema de punição, não constrói cidadania, não educa, não trabalha a base da moral da civilidade, da ética ou da empatia.

Na questão do direito dos animais, a analogia é inevitável, ainda que em pior situação: apesar de reconhecidamente sencientes, são apenas objetos materiais dos delitos e crimes, não são protegidos por si – são protegidos como bens ou reserva para os interesses dos humanos, não são protegidos por empatia. Nossa legislação insiste em regular pelo medo da punição, não por fomentar o pensamento ético. Ainda que estejamos avançados na capacidade de responsabilizar também pessoas jurídicas pelos crimes ambientais (Art. 225, CF), não iniciamos um processo de maturidade cultural que motive a preservação do meio ambiente, e, mais especificamente da fauna, per se. Maturidade cultural demonstrada pelo ministro Humberto Martins: “A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade de equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que são dotados de estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor” (STJ, Resp. 1.115.916, Rel. Ministro Humberto Martins). Entre os diversos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional visando aperfeiçoar a proteção animal, o Estatuto dos Animais (PL 631/15) busca centrar nos animais o motivo para sua proteção, começando a considerar suas necessidades etológicas, ampliando e contextualizando definições de maus-tratos.

 

Mas o que caracteriza uma vítima? Por quê os animais são apenas objetos materiais, pareados às coisas, e não sujeitos passivos de crime?

Há que se fazer a ligação entre diversas formas de vida, entender que a dessensibilização aos maus-tratos de qualquer espécie refletirá em violência contra a espécie humana. O fato de estarem os animais cada vez mais próximos da convivência humana diminui a barreira interespecífica – tomando emprestado o termo utilizado para enfermidades causadas por agentes infecciosos.

 

Afinal, qual a diferença entre o tráfico de seres humanos e de animais? Qual a diferença entre a violência contra um animal ou uma criança?

A partir do momento em que a neurociência comprova a capacidade de sentir emoções básicas nessas espécies, os animais chegam a um patamar bem mais próximo da consciência humana.

A criança, durante o amadurecimento cortical cerebral paulatino, é bastante regida pelo sistema límbico e suas associações emocionais. Chegar ao nível de desenvolvimento cortical do homem atual foi um processo complexo.

Nossos antepassados não tiveram acesso ao nível e quantidade de informação que temos hoje. Desenvolvemo-nos a partir de emoções límbicas básicas. Para sermos capazes de sobreviver tivemos que nos juntar e suportar a vida em grupo, portanto foi desenvolvido um sistema de re compensa límbica para o “fator companhia”. Do mesmo modo, os animais vivem em grupos ou bandos. A ocitocina nos permitia a paixão e o cuidado pelas crias, evoluindo posteriormente para o conceito de família. Mas o resultado final é o mesmo de outras espécies animais: cuidar de seus filhotes até que os mesmos tenham capacidade de sobreviver e se alimentar sozinhos. A amígdala cerebral nos alertava para situações potencialmente perigosas, causando aversão – seja o sentimento de pavor de uma mulher traficada como objeto sexual, privada do domínio sobre seu corpo, seja o pavor de uma ave que termina em cativeiro, privada de suas necessidades etológicas.

 

Em que ponto de nossos diplomas consideramos as emoções dos animais, se as emoções humanas são percebidas apenas timidamente?

Em que ponto nossos diplomas reconhecem a semelhança entre o desenvolvimento infantil e animal? Por meio da neurociência podemos comparar o desenvolvimento cognitivo dos animais domésticos ao de crianças em diversas faixas etárias. Os cães, por exemplo, podem ser comparados a crianças de até cerca de 3 anos de idade.

Muito mais que proteger o meio ambiente, como um conceito apenas concreto, nosso sistema jurídico precisa se lembrar que foi criado para proteger os que são passíveis de abuso. Precisa se lembrar dos preceitos de liberdade, igualdade e fraternidade, que desde a Revolução Francesa inspiram as Constituições dos países democráticos a olhar para o seu semelhante. Se não é aceitável que um ser humano sofra, sendo ele sujeito de direito, qualquer ser capaz de sentir sofrimento merece gozar dos mesmos direitos de proteção e cuidado.

As leis e os diplomas evoluíram com o pensamento e a filosofia. As ciências biológicas evoluíram a partir do empirismo e hoje alcançam o status de evidências. Já é tempo de trazer ao Direito as evidências biológicas que podem nortear o entendimento filosófico. Correntes filosóficas distintas sempre existirão, concorrerão e podem ou não se harmonizar. No entanto, evidências científicas comprovadas são imparciais. Com o tempo talvez consigamos conhecer o nome e o modo exato dos sentimentos dos animais, como ocorre quando as crianças aprendem a se expressar. Por hora, basta saber que sentem algo, assim como crianças que nunca crescerão, cujo mundo observamos por uma janela, com suficiente clareza para compreender o que lhes causa prazer ou sofrimento, e poder, para lhes garantir o respeito devido.

 

Referências 

01-PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acessado em: 30/06/2016.

02- PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Brasília, 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm>. Acessado em: 30/06/2016.

03-PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília, 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acessado em: 30/06/2016.

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07-PODER JUDICIÁRIO DE SANTA CATARINA. Juiz entende que cão não é objeto e remete disputa por animal para Vara de Família. Florianópolis: PJSC, 2016. Disponível em <http://portal.tjsc.jus.br/web/sala-de-imprensa/-/juiz-entende-que-cao-nao-eobjeto-e-remete-disputa-por-animal-para-vara-de-familia>. Acessado em: 30/06/2016.

08-SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. A Revolução Francesa de 1789 e seus efeitos no Brasil. 2009. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteu do=110843>. Acessado em: 30/06/2016.

09-TOLEDO, M. I. V. A tutela jurídica dos animais no Brasil e no direito comparado. Revista Brasileira de Direito Animal, ano 7, v. 11, p. 197-223, 2012.

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11-SALOMÃO, A. N. D. Apostilas e anotações de aula no curso “Medicina Legal”. Disciplina: Noções de Direito. 2016.