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Os indígenas e seus animais de companhia sob a óptica da Saúde Única

A presença de cães domésticos como animais de companhia é comum em comunidades indígenas após a Era dos Descobrimentos, associada às atividades de caça. Créditos: Fernando Gonsales
 A presença de cães domésticos como animais de companhia é comum em comunidades indígenas após a Era dos Descobrimentos, associada às atividades de caça. Créditos: Fernando Gonsales

Introdução

A população indígena brasileira atual compreende aproximadamente 896.917 pessoas autodeclaradas, 57,7% das quais residem em terras indígenas oficialmente reconhecidas, com maior concentração na Região Norte 1. São reconhecidas oficialmente 305 etnias e 274 variações linguísticas pertencentes aos dois principais troncos étnicos, Tupi e Macro-jê 1,2. Apesar de se diferenciarem em alguns aspectos, como linguagem, crenças e costumes, elas compartilham algumas características, destacando a vida coletiva e a sobrevivência por meio da caça, da pesca e da agricultura para consumo próprio 3. Além disso, em algumas comunidades indígenas é registrada a presença de animais de companhia, como cães, gatos e alguns animais silvestres 4.

Registros paleontológicos, históricos e genéticos indicam que animais de companhia dos atuais grupos taxonômicos dos cães (Canis lupus familiaris) e dos gatos (Felis catus) foram introduzidos na vida dos indígenas pelos europeus durante a colonização 4. Há relatos de que os cães proliferaram intensivamente entre as Américas após a Conquista, por sua capacidade de auxiliar na prática da caça 5. Trazidos por conquistadores europeus, os cães foram rapidamente adotados por diversos grupos indígenas como animais de companhia, auxiliando nas atividades de caça 4, enquanto os gatos foram adotados como animais que adornam o ambiente, sem registros de contato íntimo ou com caráter afetivo semelhante ao familiar 4,5.

O intenso fluxo de alimentos, especiarias, seres humanos e animais, especialmente de fauna exótica, entre o Velho e o Novo Mundo pode ter propiciado também o intercâmbio de doenças entre as populações 6. Sem contato prévio com doenças do Velho Mundo, as populações nativas eram imunologicamente suscetíveis aos novos patógenos, sendo fortemente impactadas por eles 6. Dentre as doenças introduzidas no Novo Mundo destacam-se a varíola, o sarampo, a catapora, a peste bubônica, o tifo e a malária 7. Apesar disso, doenças como a bartonelose, a leishmaniose tegumentar, a sífilis e a tripanossomíase americana foram registradas antes do contato com europeus e africanos 8.

As zoonoses são doenças naturalmente transmissíveis entre os animais vertebrados e o homem 9, causadas por patógenos de origem bacteriana, fúngica, viral ou parasitária 10, estes últimos geralmente associados a animais em ambientes compartilhados com seres humanos 11. Do ponto de vista epidemiológico, os cães e os gatos podem se comportar como sentinelas, alertando quanto à circulação de patógenos com importância zoonótica e à contaminação ambiental, e também podem ser fonte de infecção e reservatório de patógenos 12. Nesse sentido, a abordagem em Saúde Única entre indígenas, seu ambiente e animais de companhia em cenários pré e pós-colombianos pode ser uma importante ferramenta para o monitoramento de zoonoses.

O Intercâmbio Colombiano (Columbian Exchange) marcou a Era dos Descobrimentos, proporcionando um intenso fluxo de animais, alimentos, especiarias e seres humanos entre o Velho e o Novo Mundo, e consequentemente o intercâmbio de patógenos entre as populações 6.

Contudo, registros paleontológicos demonstram que há 10 mil anos já ocorriam espécies de canídeos nas Américas 14. Existem evidências históricas, arqueológicas e genéticas da presença de cães domesticados em populações indígenas na América do Norte e no México pré-colombiano 6. Entretanto, sua presença e distribuição na América Latina ainda está em discussão, principalmente na região Amazônica 4.

Recentemente, escavações arqueológicas no estado do Rio Grande do Sul revelaram evidências de cães domésticos (Canis lupus familiaris) há 1.500 anos 15. Vestígios de osso de mandíbula e dois molares encontrados pelos pesquisadores remetem a um cão de porte médio; por meio de uma análise química preliminar, sugere-se que a dieta do animal compreendia restos de peixe, que seguramente era alimentado por seu companheiro humano. Esse importante achado paleontológico compreende o primeiro registro de cães domésticos pré-colombianos encontrados em território brasileiro 16. A hipótese da ocorrência de cães anteriores à Era dos Descobrimentos tem sido corroborada pelo sequenciamento de 71 fósseis de cães americanos e siberianos, além da análise de DNA mitocondrial de 145 espécimes modernos e antigos contidos em um banco de dados mundial 17. A árvore filogenética construída pelos autores a partir dos genomas dos animais demonstrou que os cães americanos que habitavam o continente antes do contato com o colonizador europeu descendiam de populações caninas da ilha Zhokhov, da Sibéria oriental 17. Isso sugere que os cães americanos se originaram na Sibéria e atravessaram o estreito de Bering durante as primeiras ondas de migrações humanas para o continente 17. Com o impacto da colonização, houve o declínio da população de cães siberianos, possivelmente por doenças, perseguição cultural e mudanças biológicas 17. Ainda que dizimados, os cães nativos americanos deixaram como marca o tumor venéreo (TVT) nos animais europeus, sendo o último vestígio da população que se aventurou pelo estreito de Bering há mais de 10 milênios 17.

Os cães de comunidades indígenas após a colonização se destacavam pela habilidade de rastrear e caçar animais como cotias, pacas, tatus e outras presas de pequeno porte que fazem parte da dieta de indígenas 4,6. Entre comunidades indígenas Koripako, localizadas no Alto Rio Negro, AM, foi registrada a prática da não alimentação dos cães, atrelada ao treinamento desses animais para a caça 18. Há relatos de que povos indígenas da etnia Achuar concedem aos cachorros ervas para que tenham um olfato mais aguçado 19. Relata-se ainda que entre alguns povos indígenas da Amazônia, os cães de caça são propriedade dos homens e recebem tratamento especial em relação aos demais cães não caçadores, figurando ora como ajudantes na caça, ora como animais domésticos 20.

 

Impacto da interação na saúde única

Os cães, como dito anteriormente, destacam-se em atividades de caça em comunidades indígenas 3,4, o que pode se refletir na saúde desses animais, devido à exposição a vetores e patógenos em áreas de mata preservada. Durante estudo realizado em comunidades indígenas de etnias Tapirapé e Karajá, no estado do Mato Grosso, 327 cães (114 tapirapés e 213 karajás) foram avaliados com o objetivo de pesquisar a presença de anticorpos para anti-Babesia vogeli, anti-Ehrlichia canis e anti-Rickettsia spp 21. Os resultados apontaram 13,15% soropositivos para B. vogeli e 14,37% para E. canis, e, das 103 amostras, 87% tiveram resultados soropositivos para pelo menos uma espécie de Rickettsia spp 21. Dos 327 cães, 11,9% estavam infestados por carrapatos Amblyomma cajennense stricto sensu, Amblyomma ovale, Amblyomma oblongoguttatum, Amblyomma tigrinum e Rhipicephalus sanguineus 21. De acordo com os autores, o hábito de utilizar os cães para caça pode estar associado à exposição dos animais aos patógenos e aos carrapatos 21.

Zoonoses causadas por protozoários também têm sido estudadas em comunidades indígenas. Um estudo de prevalência de anticorpos anti-Toxoplasma gondii e anti-Neospora caninum observou a exposição a esses patógenos em comunidades indígenas de etnias Tapirapé e Karajá, no estado do Mato Grosso 21. Foram testadas 325 amostras sorológicas de cães presentes na comunidade indígena para pesquisa de anticorpos IgG anti-T. gondii e anti-N. caninum, e dessas 52% tiveram resultados soropositivos para T. gondii e 9,8% para N. caninum 21,22. Os gatos podem não apresentar uma interação tão próxima com os indígenas, podendo tornar-se arredios e por vezes ferais 4,23. Recentemente, um estudo sorológico sobre a exposição ao T. gondii na comunidade indígena Haliti-Paresi, pertencente à terra indígena Utiariati, MT, aponta a presença de gatos domésticos na aldeia como animais de estimação; esses gatos realizam a caça de animais silvestres e compartilham a fonte de consumo de água, o que pode pôr a comunidade em risco de contrair a doença 24.

Estudos sobre a presença de parasitos de importância zoonótica no ambiente também têm sido realizados em comunidades indígenas, incluindo duas da etnia Kaingang, no estado do Paraná, visando analisar o grau de contaminação do solo por parasitas 25. Foram coletadas 18 amostras de solo no peridomicílio e 22 amostras das residências, tratadas por meio da técnica de sedimentação em água para avaliar a presença de ovos 25. Os resultados indicaram contaminação de 75,5% na comunidade indígena de Faxinal e de 96,2% em Ivaí. Os parasitas mais prevalentes foram Ascaris spp, Isospora spp e Toxocara spp 25, sugerindo que a falta de tratamento de excrementos humanos e animais de companhia influenciou fortemente o grau de contaminação do solo encontrado nessas comunidades 25.

 

Considerações finais 

A presença de cães e gatos em comunidades indígenas representa uma forte interação entre homem e animais de companhia, seja pelo vínculo afetivo e/ou para atividades de caça. Nesse contexto, o monitoramento da circulação de patógenos e da ocorrência de vetores entre animais de companhia, indígenas e animais silvestres se faz necessário para embasar ações de controle e prevenção de doenças com abordagem em saúde única.

 

Referências

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