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Saúde única

A convergência essencial

Elevando a saúde vegetal a um pilar indispensável na estrutura da Saúde Única

Matéria escrita por:

Paulo Abilio Varella Lisboa

17 de nov de 2025


A saúde global, em sua complexidade multifacetada, demanda abordagens integradas que reconheçam a interconexão intrínseca entre seres humanos, animais e o meio ambiente. O conceito de One Health (Saúde Única ou Uma só Saúde) emergiu como um paradigma essencial para enfrentar desafios sanitários contemporâneos, desde pandemias zoonóticas até a resistência antimicrobiana. No entanto existe uma assincronia notável: embora a saúde vegetal tenha sido formalmente incluída na definição de Saúde Única, sua integração prática e estratégica ainda se mostra deficiente e a um papel secundário em planos de ação globais. Este artigo argumenta que a mera “inclusão” da saúde vegetal na retórica de Saúde Única é insuficiente; é imperativo um paradigma de convergência proativa e sistemática para que a Saúde Única possa verdadeiramente cumprir sua promessa de otimizar a saúde de todos os seres vivos e do planeta.

Historicamente, o foco de Saúde Única tem sido predominantemente moldado por preocupações com a saúde humana e animal, impulsionado pela prevalência de doenças zoonóticas e pela crescente ameaça da resistência antimicrobiana (RAM). Conceitualmente, a saúde animal e humana foram os motores iniciais por trás da Saúde Única. A descoberta da penicilina e o subsequente uso massivo de antimicrobianos, juntamente com surtos de doenças como a gripe aviária, SARS e Covid-19, solidificaram essa orientação. Consequentemente, planos de ação e iniciativas de financiamento, como observado no mapeamento do cenário de financiamento global de Saúde Única, continuam a priorizar largamente essas dimensões.

Essa visão restrita, entretanto, ignora a contribuição fundamental da saúde vegetal para a segurança alimentar, a saúde humana e animal, e a sustentabilidade ambiental. Doenças e pragas de plantas, aquecimento global, desertificação, queimadas e enchentes exemplificam os impactos devastadores na disponibilidade de alimentos e nos meios de subsistência, resultando em desnutrição e enfraquecimento da saúde humana e animal. Além disso, a perda de produtividade agrícola devido a pragas e doenças, estimada em 20-30% das colheitas globais anualmente, é agravada pelas mudanças climáticas e pela resistência a pesticidas. A saúde vegetal, ou a falta dela, tem implicações diretas e profundas que reverberam por todos os domínios da Saúde Única.

A dificuldade em integrar a saúde vegetal de forma significativa pode ser atribuída a uma série de barreiras conceituais, financeiras e de poder. A concepção original de Saúde Única, centrada em zoonoses e RAM, criou uma “ontologia” que, embora essencial para a colaboração entre disciplinas de saúde humana e animal, inadvertidamente fechou as portas para perspectivas mais amplas. Nos questionamos “de quem é a saúde considerada no paradigma Saúde Única?” e “qual conceito de saúde pode ser significativamente referido ao falar de Saúde Única?”. No contexto vegetal, a saúde das plantas é frequentemente vista como um meio para um fim (alimento, forragem, serviços ecossistêmicos), e não como um propósito em si mesmo, o que dificulta sua posição na hierarquia de importância percebida dentro da estrutura de Saúde Única. Essa visão equivocada perpetua uma fragmentação no sistema de abordagem de Saúde Única e limita a coordenação interdomínio.

A evidência de um trabalho integrado, que se enquadraria na Saúde Única, já existe no campo da saúde vegetal, mas que pode ser caracterizado como uma “abordagem de Saúde Única e não declarada”. Exemplos incluem um esforço conjunto dos órgãos ambientais, de saúde humana e animal, na gestão de pesticidas, de fatores de mudança global, do risco de doenças infecciosas em seres humanos, animais e plantas, de estudos de microbioma do solo/planta e ser humano, de controle biológico. Estudos ecossistêmicos para promover a saúde das plantas e reduzir a poluição ambiental podem e devem estar interconectados e gerando benefícios em múltiplas esferas.

Mas, de certa forma, a ausência da inclusão explícita nos muitos textos e contextos de Saúde Única limita o reconhecimento, a visibilidade e o potencial de sinergia. O termo “One Health washing” apresentado por Giraudoux et al em 2022, alerta para o risco de diluir o significado de Saúde Única, se ele for aplicado indiscriminadamente sem uma colaboração intersetorial e transdisciplinar genuína. A verdadeira questão não é apenas a terminologia, mas o problema mais profundo da desconexão que impede a identificação de prioridades, lacunas de conhecimento e oportunidades para resolver problemas complexos de saúde.

A governança e o financiamento são, sem dúvida, os pilares que sustentam ou impedem a mudança. A Quadripartite (FAO, UNEP, WHO, WOAH) e o One Health High-Level Expert Panel (OHHLEP) possuem um poder significativo de agenda-setting. No entanto, mesmo declarações de alto nível, como as do G7 e G20, embora mencionem plantas, frequentemente o fazem em um enquadramento genérico de interconectividade, sem detalhar ações específicas para a saúde vegetal, e são predominantemente articuladas por ministros da saúde, reforçando uma visão antropocêntrica. A falta de um “mundo vegetal” igualmente articulado e com poder de advocacia global, análogo ao que existe para zoonoses e RAM, é uma desvantagem crítica. O financiamento, por sua vez, tende a reforçar essa assimetria, com a maioria dos esquemas de financiamento de Saúde Única focados nas dimensões de saúde humana-animal e preparação para pandemias, deixando a saúde vegetal sub-representada.

Para alcançar uma verdadeira convergência, é essencial uma mudança fundamental de mentalidade e estrutura. A “definição de Saúde Única do OHHLEP, como uma abordagem integrada e unificadora que visa equilibrar e otimizar de forma sustentável a saúde das pessoas, animais e ecossistemas, oferece o alicerce conceitual. No entanto, é necessário ir além do reconhecimento formal e avançar para a integração operacional.

Talvez seja importante fortalecer o valor agregado (added value), conforme definido pelo periódico CABI One Health: “qualquer valor adicionado em termos de saúde humana, animal, vegetal e ambiental, sustentabilidade, economia financeira e resiliência social, alcançável pela cooperação das ciências humanas, veterinárias, vegetais, ambientais e sociais quando comparadas com as disciplinas trabalhando independentemente”, devendo ser um eixo central efetivo para avaliar a autenticidade e a eficácia das iniciativas de Saúde Única. Isso exige que o “mundo vegetal” se torne mais proativo em articular seus benefícios e em buscar seu lugar à mesa.

Várias ações podem ser feitas, como: 

a) Integração explícita de políticas: planos de ação globais, como o plano de ação conjunto da quadripartite, precisam detalhar explicitamente como abordarão questões de alto impacto na saúde vegetal, como micotoxinas, riscos de pesticidas, pandemias vegetais e espécies invasoras. A simplificação da “saúde ambiental” para incluir especificamente a saúde vegetal, distinguindo a produção agrícola dos ecossistemas mais amplos, é um passo crucial;

b) Reorientação do financiamento: as agências financiadoras devem ser incentivadas a priorizar abordagens intersetoriais e transdisciplinares, exigindo indicadores de Saúde Única que englobem todas as suas dimensões, incluindo a saúde vegetal. Isso incentivaria a colaboração e a inovação;

c) Construção de capacidade interdisciplinar: programas de educação e treinamento devem ser desenvolvidos para fomentar a compreensão mútua entre especialistas em saúde humana, animal, vegetal e ambiental. Isso ajudaria a superar a relutância em trabalhar juntos e a reconhecer o valor das contribuições de cada um; 

d) Alavancagem de “trabalho não declarado”: as iniciativas existentes que já incorporam princípios de Saúde Única no campo da saúde vegetal, mesmo sem o rótulo, devem ser identificadas, documentadas e promovidas como modelos;

e) Desenvolvimento de estruturas conceituais robustas: o investimento em pesquisa teórica para desenvolver estruturas que posicionem a saúde vegetal de forma integral dentro da Saúde Única é fundamental. Abordagens como a teoria dos jogos aplicada a sistemas socioecológicos, que analisam o uso sustentável de recursos ambientais e a saúde de todas as espécies, podem oferecer ferramentas valiosas para entender e gerenciar os desafios complexos.

Em uma análise crítica, a omissão em integrar a saúde vegetal de forma profunda e significativa na Saúde Única não é apenas uma questão de terminologia ou visibilidade; pode ser intencionalmente estratégica, comprometendo a capacidade global de enfrentar os desafios mais prementes da agenda 20/30 e 20/50. As crescentes pressões da mudança climática, crescimento populacional, perda de biodiversidade e poluição química tornam imperativa uma abordagem genuinamente holística. A Saúde Única não pode atingir seu pleno potencial se os “mundos” envolvidos permanecerem desconectados. A revisão constante da abordagem Saúde Única é uma responsabilidade de todos, exigindo que especialistas de todas as áreas trabalhem juntos para demonstrar os benefícios adicionais de abordar a saúde humana, animal, vegetal e ecossistêmica de forma integrada. Somente então a saúde vegetal poderá ser firmemente estabelecida como um pilar igual e indispensável na estrutura da Saúde Única, garantindo um futuro mais resiliente e saudável para todos.