Relato de experiência em estágio curricular em medicina veterinária do coletivo

A graduação em medicina veterinária da Universidade Federal do Paraná tem como período de formação um total de cinco anos, dos quais o último semestre destina-se somente à disciplina de estágio curricular, obrigatório para a corporificação profissional. O objetivo desse período consiste em proporcionar a oportunidade de o aluno realizar uma experiência teórico-prática nas áreas de seu interesse individual, por meio da orientação de um professor da graduação.
A medicina veterinária é composta por muitas esferas de atua ção – dentre elas, a que chamamos de medicina veterinária do coletivo, com práticas em saúde coletiva, medicina de abrigos e medicina veterinária legal. Os profissionais dessa área são responsáveis pelo estudo e pelo controle de situações que envolvam a interação entre ser humano/animal e meio ambiente e que impactem negativamente indivíduos, famílias e comunidades, além dos próprios animais.
Dentre essas situações se encontram as zoonoses, o abandono animal, a falha no manejo populacional e os maus-tratos infligidos aos animais, incluindo as situações que envolvam os acumuladores e a violência interpessoal (Teoria do Elo).
O estágio curricular em questão teve como principal obje tivo a experiência na área de medicina veterinária legal (MVL) e medicina de abrigos, na American Society for the Prevention of Cruelty to Animals (ASPCA), em Nova York (EUA), e na Humane Society Silicon Valley, na cidade de Milpitas, Califórnia (EUA), respectivamente.
A MVL é uma área em que os diferentes conhecimentos científicos (biológicos, físicos e químicos) são reunidos e aplicados em favor da justiça. Os médicos forenses são responsáveis pela investigação, coleta, análise de dados e identificação da causa mortis, entre outras atividades de rotina da área, principalmente no que se refere aos maus-tratos infligidos aos animais.
A medicina veterinária de abrigo envolve, principalmente: a triagem dos animais abandonados/recolhidos, a sua reabilitação (cuidados necessários à estabilização em casos de emergência, além do tratamento médico clínico e cirúrgico indispensáveis à preservação da saúde animal), programas preventivos que incluem a promoção do bem-estar animal e o controle populacional, o manejo com portamental e a reintrodução na comunidade por meio das adoções.
American Society for the Prevention of Cruelty to Animals (ASPCA)
A ASPCA é uma instituição não governamental que cujo objetivo principal é trabalhar em favor da proteção e da lei relativa aos animais.
Fundada em Londres, na Inglaterra, pelo americano Henry Bergh, e anteriormente chamada de Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA), sua trajetória iniciou-se em 1840.
Desde 2014, iniciou-se uma parceria com a polícia de Nova York, onde cerca de 35 mil oficiais e 9 delegados da polícia foram destinados a trabalhar exclusivamente os casos de maus-tratos infligidos aos animais na cidade de NY, propositais ou não, caracterizados por atos de violência e negligência.
A instalação, localizada no bairro de Manhattan, na cidade de Nova Yok (Figura 1), possui um total de cinco andares, além do térreo, e é formada pela equipe forense, pelo hospital veterinário (Figura 2) e pelos setores de reabilitação animal (Figura 3), de adoção de cães e gatos (Figuras 4 e 5), de medicina comunitária (controle de doenças e populacional) (Figura 6), de ciência do comportamento animal e de voluntariado.
Com relação à equipe forense, a ASPCA é responsável pelos casos de maus-tratos infligidos aos animais em toda a cidade de Nova York, mais especificamente nos bairros de Manhattan, Brooklyn, Bronx, Queens e Staten Island.
Todo caso confirmado ou suspeito de maus-tratos é encaminhado à ASPCA por meio da polícia da cidade, também responsável pela condução dos animais vivos ou mortos à instituição, ou pela solicitação do comparecimento da equipe ao local do crime.
Os animais envolvidos devem passar sempre pela triagem, efetuada pela equipe forense, em local próprio para esse fim (Figura 7). Após a perícia e o registro de todos os dados, é realizado o laudo médico e encaminhado ao NYPD, responsável pelo andamento das investigações. Dessa maneira, em circunstâncias nas quais um caso seja levado a julgamento, o médico-veterinário responsável pode ser chamado a depor.
Durante o período do estágio, foram acompanhados 25 processos de denúncia, triagem e perícia, envolvendo ao todo 89 animais supostamente vítimas de maus-tratos, além da discussão dos casos (reuniões semanais), de exames de necrópsia, da vistoria de animais internados em outros hospitais parceiros e do acompanhamento do Casework Day (dia da semana destinado à vistoria dos casos de suspeita, denúncia e/ou achados de crueldade recentes ou em andamento da cidade de Nova York).
A seriedade no enfrentamento dos casos de maus-tratos infligidos aos animais na cidade de Nova York demonstra que é possível criar mecanismos intersetoriais de combate a esse crime, bem como de investigação de outras formas de violência interpessoal que esses casos podem indicar (Teoria do Elo).
Human Society Silicon Valley (HSSV)
A HSSV (Figura 8) é um abrigo e hospital veterinário de caráter não governamental cujo principal intuito é abrigar, oferecer cuidados médicos e promover a adoção de animais abandonados e/ou em situação de rua.
Fundada em 1929, a HSSV se sustenta por meio de doadores e patrocinadores, e, assim, já foi responsável pela adoção de mais de 500 mil animais.
A instituição, localizada na cidade de Milpitas, na Califórnia, mais especificamente na região do Silicon Valley, é com posta pelo hospital (Figuras 9, 10, 11 e 12), pelo centro de adoção (Figuras 13, 14, 15 e 16), pelo setor de isolamento e quarentena animal (Figuras 17 e 18) e pelo centro de triagem e chegada de novos animais (Figura 19), além de uma área externa de socialização animal (Figura 20).
O abrigo atende, recebe e adota cães, gatos e coelhos de origem particular, devolvidos após a adoção, encontrados em situação de rua ou de abandono, abandonados pelos responsáveis e/ou com indicação de eutanásia de praticamente toda a região de Silicon Valley. Assim como na ASPCA, todos os animais recém-chegados devem passar pelo exame de triagem e por um período de observação clínica e comportamental, além de receberem tratamentos, se necessários, castração, vacinação e microchipagem, sendo enfim destinados à adoção, se possível.
Durante o estágio curricular foram acompanhados 32 atendimentos e 76 cirurgias nas áreas de clínica médica e cirúrgica, respectivamente, das quais 88% foram castrações. Além disso, foram observados sete exames de triagem e a chegada de novos animais, o andamento das adoções e as avaliações comportamentais.
O abrigo possui eficientes programas preventivos de doenças infecciosas, controle populacional e melhora do bem-estar animal. Isso representa uma importante contribuição para a saúde física e psicológica da comunidade, na qual a participação do médico-veterinário é primordial na promoção das relações positivas entre os animais, o ambiente e os seres humanos.
Considerações finais
O trabalho da medicina veterinária forense, junto à investigação de maus-tratos, e da medicina veterinária de abrigo, junto à reabilitação médica dos animais como vítimas, são duas partes que se completam na condução dos casos de maus-tratos infligidos aos animais. Devido a isso, a atuação do médico veterinário capacitado como o “porta-voz’’ das vítimas de maus-tratos, a introdução de unidades fiscalizadoras das leis, a denúncia dos casos e a seriedade para com a justiça das medidas são essenciais para a defesa e a proteção animal na sociedade.
No Brasil, a falta de locais para a permanência temporária de animais mantém as vítimas na situação de maus-tratos e, muitas vezes, junto a seus agressores. É fundamental que os estados e municípios se organizem tanto para o atendimento de casos de maus-tratos aos animais, seja pela área da saúde ou de meio ambiente, como também disponibilizem casas de passagem para que os animais em situações severas de maus-tratos possam ser resgatados, reabilitados e reintroduzidos em novos lares por meio da adoção.
A realização de estágio nas áreas de medicina veterinária forense e medicina veterinária de abrigo possibilitou a experiência em muitas das áreas que constituem a medicina veterinária do coletivo, tais como a condução dos casos de maus-tratos, o manejo populacional, o controle de doenças/zoonoses e a medicina veterinária de abrigo e proteção animal, tornando possível, então, a percepção da importância do médico-veterinário na promoção da saúde da comunidade como um todo.
Referências
01-NEWBURY, S. ; BLINN, M. K. ; BUSHBY, P. A. ; COX, C. B. ; DINNAGE, J. D. ; GRIFFIN, B. ; HURLEY, K. F. ; ISAZA, N. ; JONES, W. ; MILLER, L. ; O’QUIN, J. ; PATRONEK, G. J. ; SMITH-BLACKMORE, M. ; SPINDEL, M. Guidelines for standards of care in animal shelters. Washington: The Association of Shelter Veterinarians, 2010. 67 p. Disponível em <http://www.sheltervet.org/assets/docs/shelter-standards-oct2011-wforward.pdf>. Acesso em 17 de dezembro de 2017.
02-DINNAGE, J. D. ; SCARLETT, J. M. ; RICHARDS, J. R. Descriptive epidemiology of feline upper respiratory tract disease in an animal shelter. Journal of Feline Medicine and Surgery, v. 11, n. 10, p. 816-825, 2009. doi: 10.1016/j.jfms.2009.03.001.
03-REISMAN, R. ; ASPCA. History and purposes. New York: American Society for the Prevention of Animal Cruelty, 2010.
04-REISMAN, R. ASPCA. Recognizing and reporting animal cruelty for the first section, New York. American Society for the Prevention of Animal Cruelty, 2010.
05-HUMANE SOCIETY SILICON VALLEY. Get to know HSSV. Who we are – about us. Disponível em: <http://www.hssv.org/who-we-are/about-us/>. Acesso em: 12 de outubro de 2017.