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Proposta de protocolo para resgate seletivo em abrigos de animais

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Introdução

A dinâmica de abandono de animais envolve diversos fatores, como mudança de moradia, questão financeira, perda do interesse pelo animal, ninhadas indesejadas, conflitos pessoais com o animal, falta de espaço na residência e/ou problemas comportamentais 1. No Brasil, não há uma contagem oficial de animais errantes ou em situação de rua, mas estima-se que entre 2020 e 2021 o abandono tenha aumentado, chegando a algo ao redor de 20 a 30% 2. Fazem parte dos animais em situação de rua ou errantes os que têm um tutor (semidomiciliados), os que não têm um tutor (abandonados), os perdidos e os comunitários (Figura 1). Um gato errante ou em situação de rua pode ter ou não tutor, estar perdido ou ser comunitário.

 

Figura 1 – Subpopulações caninas consideradas como de animais em situação de rua. Adaptado 3

 

Animais soltos em vias públicas podem causar acidentes de trânsito, acidentes por mordeduras, danos a propriedades tanto públicas quanto privadas e predação da fauna silvestre pelo hábito de caça 4, impactando o seu bem-estar e a saúde pública 5. Todas essas consequências do abandono podem ser controladas e prevenidas com um eficiente programa de Manejo Populacional de Cães e Gatos (MPCG), com legislação adequada, identificação e registro de animais, educação da população em guarda-responsável, cuidados básicos de saúde, controle reprodutivo, controle do comércio, participação social, vacinação e controle parasitário, bem como casas de passagem (Centros de Acolhimento e Adoção – CAA) 6.

Em municípios sem políticas públicas eficientes para o MPCG ou onde as políticas são recentes (com menos de 5 anos), os CAA (abrigos públicos, privados ou mistos) e os protetores independentes são sobrecarregados com as demandas de resgate e manutenção de animais abandonados. Essas ações fazem a diferença para cada vida salva, mas, sem políticas públicas eficientes para o MPCG, essas ações não conseguem impactar a taxa do abandono.

O resgate desenfreado aumenta a densidade de animais nos abrigos, o risco de transmissão de doenças, os custos e o tempo de permanência dos animais nesses locais. Também impacta diretamente o nível de bem-estar dos animais mantidos, podendo chegar a níveis baixos ou muito baixos, o que representaria maus-tratos.

Essa proposta de protocolo para resgate seletivo em abrigos de animais tem como objetivo principal a diminuição da admissão de animais nos abrigos.

 

Resgate seletivo

Apesar de os gestores e os funcionários de abrigos atuarem sempre com o objetivo de melhorar a qualidade de vida dos animais e encontrar um lar seguro e definitivo para eles, muitas vezes as admissões não seguem um critério ou seleção prévia. O resultado impacta de forma significativa o nível de bem-estar, comprometendo a saúde física e psíquica desses animais 7,8.

O abrigo deve servir apenas como uma casa de passagem, baseando suas ações nos 4 Rs da Medicina de Abrigos: resgate seletivo, recuperação, ressocialização e reintrodução na sociedade por meio da adoção 9. Cada abrigo tem a sua Capacidade de Prover Cuidados (CPC) e deve respeitá-la, não ultrapassando os limites, pois, quando isso acontece, os níveis de bem-estar dos animais diminuem. Dessa forma, ter um protocolo de admissão bem-estruturado é fundamental para a triagem dos animais que serão resgatados e, consequentemente, para diminuir a admissão.

A fim de otimizar e deixar suas ações mais efetivas, todo abrigo deve ter critérios de resgate de animais bem definidos, sempre considerando sua CPC. Os critérios para a admissão de animais devem ser definidos de acordo com a realidade do local em que o abrigo está inserido e das legislações vigentes. Além disso, a instituição deve elencar situações mais e menos prioritárias, construindo junto à comunidade e aos líderes locais alternativas ao resgate, como a implantação do programa de Animais Comunitários, do programa de Captura, Esterilização e Devolução (CED) ou de parcerias com indivíduos para Lares Temporários (LTs). Essas abordagens facilitam o trabalho no local e garantem a segurança e a saúde mental dos funcionários e voluntários, permitindo melhorar o bem-estar dos animais alojados 10.

 

Protocolo de resgate animal

Protocolo de Manchester 

O protocolo Manchester é utilizado como um Sistema de Classificação de Risco (SCR), ou seja, é uma forma de triagem amplamente utilizada em hospitais de emergência e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), sendo de suma importância para evitar problemas no andamento dos atendimentos e na capacidade dos hospitais.

Serviços que lidam com o recebimento de pacientes podem enfrentar desafios quanto à organização interna e aos suprimentos, bem como à alta demanda de pacientes que chegam diariamente. Portanto, a existência de uma classificação que determine que casos devem ser atendidos imediatamente e quais deles podem esperar sem prejuízo à vida dos pacientes é essencial nesses estabelecimentos, evitando a superlotação 11. Paralelamente a essas situações vividas em estabelecimentos de saúde humana, em abrigos de animais situações semelhantes podem ocorrer, tais como a alta demanda de animais que precisam de cuidado e diversas limitações financeiras e estruturais, bem como diferentes formas de organização das ONGs e diversos tipos de animais com riscos diferentes.

A classificação de Manchester é feita pela análise da condição clínica do paciente e indica o tempo máximo para prestação de atendimento. A divisão é feita por cores e de acordo com o estado geral de saúde do indivíduo, sendo elas: vermelho (mais crítico/maior risco), laranja, amarelo, verde e azul (menos crítico/menor risco) 12. Com o objetivo principal de diminuir a admissão de animais nos abrigos, criou-se uma classificação semelhante à de Manchester para o recolhimento seletivo nos abrigos, indicando quais animais devem ou não ser admitidos com base na sua classificação de risco de sofrimento e de morte, respeitando a CPC do abrigo.

A figura 2 apresenta o protocolo proposto para a filtragem das demandas de resgate e as solicitações de ajudas recebidas, de modo a otimizar o trabalho desenvolvido pelo abrigo e seu impacto na qualidade de vida dos animais. As cores vermelho, laranja, amarelo, verde e azul representam a gravidade do risco.

 

Tempo de ação Sistema de
classificação de risco
Condição do animal Conduta
Até 1h Emergência
Atendimento imediato
Animal sem tutor e em extremo sofrimento Resgatar a o animal e oferecer atendimento médico-veterinário; avaliar a eutanásia b
Até 12h Muito urgente Atendimento no mesmo dia A – Abandono de ninhada sem a mãe.
B – Fêmea com filhotes/fêmea prenhe sem tutor ou mantenedor

A – Resgatar a ninhada; acionar rede de apoio LT c
B – Resgatar a cadela e os filhotes; acionar rede de apoio LT

Até 48h Urgente
Avaliar a urgência
para providenciar o atendimento – até
48 horas
Fêmea no cio sem tutor ou
mantenedor
Castração da fêmea
A – Acionar rede de apoio LT para pré e
pós-cirúrgico B – Divulgar animal para adoção ou
devolvê-lo ao local de resgate
      – Pouco urgente Animais com pouco risco de morte e saudáveis que
estejam na localidade
Não recolher
A – Acionar rede de apoio LT
B – Castrar, vacinar, desverminar e divulgar o animal para adoção
      – Sem urgência A – Animal saudável em via pública
B – Gato feral
Não recolher
A – Procurar o tutor e conversar com ele; acionar rede de apoio LT; comunicação com a sociedade
B – Iniciar preparação para captura,
esterilização e devolução (CED) d

 

Essa ferramenta torna-se um guia para as ações de resgate e recolhimento efetuadas por um abrigo, mas não é necessariamente um modelo estático. O recolhimento – indicado ou não pela tabela de classificação – deve levar em consideração fatores como estrutura física disponível para o alojamento de cães e gatos, recursos humanos disponíveis para o tratamento e o cuidado dos animais, e recursos financeiros disponíveis naquele momento, além do número total de animais que já estão sob responsabilidade da instituição. Um resgate só deve ser realizado se o abrigo estiver atuando dentro da sua capacidade de prover cuidados.

Além disso, para todas as situações, é importante que o abrigo tenha conhecimento das políticas públicas voltadas ao MPCG e à proteção dos animais vigentes no município. Essa é uma forma de dar assistência ao animal sem extrapolar a Capacidade de Prover Cuidados (CPC) do abrigo, além de ser uma maneira eficiente de cobrar maior efetividade das ações propostas pelos governantes.

 

Agradecimentos

Agradecemos imensamente a todas as pessoas envolvidas na construção deste artigo – em especial aos médicos e médicas-veterinárias do Fórum Nacional de Proteção Animal, do Instituto de Medicina Veterinária do Coletivo (IMVC), do Instituto Pasteur e da Ampara Animal; aos pós-graduandos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR); e aos médicos e médicas-veterinárias autônomos que dedicaram seu tempo à revisão deste texto.

 

Referências

01-PASTORI, E. O. ; MATOS, L. G. Da paixão à “ajuda animalitária”: o paradoxo do “amor incondicional” no cuidado e no abandono de animais de estimação. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, v. 3, n. 1, p. 112-132, 2015. doi: 10.24305/cadecs.v3i1.12277.

02-CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. Conselho de veterinária alerta sobre abandono de animais durante a pandemia. Goiânia: UFG, 2020. Disponível em: <https://www.evz.ufg.br/n/131077-conselho-de-veterinaria-alerta-sobreabandono-de-animais-durante-a-pandemia>. Acesso em 23 de novembro de 2020.

03-COALIZÃO INTERNACIONAL PARA O MANEJO DE ANIMAIS DE COMPANHIA. Princípios do manejo da população de cães. In: Guia para o manejo humanitário de populações caninas. ICAM, 2019. p. 17-20 Disponível em: https://www.icam-coalition.org/wp-content/uploads/2019/09/ICAM-ManejoHumanitario-2020.06.21.pdf. Acesso em 2 de dezembro de 2019.

04-FORTES, F. S. ; WOUK, A. F. P. F. ; BIONDO, A. W. ; BARROS, C. C. Acidentes por mordeduras de cães e gatos no município de Pinhais, Brasil de 2002 a 2005. Archives of Veterinary Science, v. 12, n. 2, p. 16-24, 2007 doi: 10.5380/avs.v12i2.9904.

05-GARCIA, R. C. M. ; CALDERÓN, N. FERREIRA, F. Consolidação de diretrizes internacionais de manejo de população caninas em áreas urbanas e proposta de indicadores para seu gerenciamento. Revista Panamericana de Salud Pública, v. 32, n. 2, p.140-144, 2012.

06-WORLD ANIMAL PROTECTION. Manejo humanitário de cães. WAP, 2015. 37 p. Disponível em: <https://www.worldanimalprotection.org.br/sites/default/files/media/br_files/manejo_humanitario_de_caes_wap_portugues_pg2_alta.pdf>. Acesso em 24 de maio de 2021.

07-FINKA, L. R. ; ELLIS, S. L. H. ; STAVISKY, J. A critically appraised topic (CAT) to compare the effects of single and multi-cat housing on physiological and behavioural measures of stress in domestic cats in confined environments. BMC Veterinary Research, v. 10, n. 73, p. 1-11, 2014. doi: 10.1186/1746-6148-10-73.

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11-SACOMAN, T. M. ; BELTRAMMI, D. G. M. ; ANDREZZA, R. ; CECÍLIO, L. C. O. ; REIS, A. A. C. Implantação do Sistema de Classificação de Risco Manchester em uma rede municipal de urgência. Saúde em Debate, v. 43, n. 121, p. 354-367, 2019. p. 354-367. doi: 10.1590/0103-1104201912105. 

12-ANZILIERO, F.; SOLER, B. E. D. ; SILVA, B. A. ; TANCCINI, T. ; BEGHETTO, M. G. Sistema Manchester: tempo empregado na classificação de risco e prioridade para atendimento em uma emergência. Revista Gaúcha de Enfermagem, v. 37, n. 4, p. e64753, 2016. doi: 10.1590/1983-1447.2016.04.64753.

13-MANCHESTER TRIAGE GROUP. Sistema Manchester de classificação de risco: classificação de risco na urgência e emergência. Belo Horizonte: Grupo Brasileiro de Classificação de Risco, 2010.