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O resgate de animais de companhia em cenários de guerra

Desafios para a medicina veterinária de desastres

Gato junto a uma casa bombardeada em Donbass, no leste da Ucrânia. Créditos: D.Alimkin Gato junto a uma casa bombardeada em Donbass, no leste da Ucrânia. Créditos: D.Alimkin

O século XX foi permeado por guerras cuja consequência foi um grande número de refugiados 1. Acreditava-se que, com o final da Guerra Fria, os tempos de guerra se haviam encerrado. Entretanto, no início do século XXI o cenário de guerra retornou após os atentados de 11 de setembro de 2001 2. O conflito de 2001 deu origem à guerra entre os Estados Unidos e o Afeganistão, que perdurou por 20 anos, encerrando-se em agosto de 2021 com a saída das tropas estadunidenses do Afeganistão. A ocorrência desses conflitos sociopolíticos tem alertado as agências humanitárias, preocupadas com as populações atingidas e com os refugiados 3. Segundo a Organização da Nações Unidas (ONU), estima-se que a Guerra do Afeganistão gerou 2,5 milhões de refugiados, o que corresponde a aproximadamente 6% da população do país 4.

Apesar do fim da guerra do Afeganistão, os recentes conflitos entre Rússia e Ucrânia vêm marcando o início de 2022 5. A tensão entre os países teve seu ápice com a invasão das tropas russas ao território ucraniano em 24 de fevereiro de 2022 5. Segundo a ONU, 1.892 civis morreram até 13 de abril. O governo da Ucrânia relata a perda de 3 mil soldados ucranianos e 20 mil civis ucranianos; segundo o governo russo, foram registrados 1.083 soldados russos mortos durante o conflito, de acordo com dados atualizados em 5 de abril, em contraste com a declaração das forças armadas da Ucrânia, que relataram a morte de 18.300 soltados russos desde o início da invasão da Rússia 6,7. Em relação aos refugiados gerados por esse confronto, de acordo com a ONU, mais de 10 milhões de civis deixaram a Ucrânia 8.

Além dos seres humanos, os animais são vítimas desses conflitos 9. Nos últimos 50 anos, situações de guerra geraram consequências devastadoras para muitas espécies de animais, particularmente animais de criação e de companhia, que são altamente dependentes de cuidados humanos e que foram privados desses cuidados 10. Além de vítimas, os cães também têm auxiliado na busca por combatentes desaparecidos no campo de batalha e civis que precisam de assistência médica 11. A medicina veterinária de desastres (MVD) tem por objetivo intervir em situações em que há grande número de vítimas, muitas delas graves e até fatais, em acontecimentos que exaurem os recursos de infraestrutura locais, regionais ou nacionais, o que requer decisões rápidas e eficientes 12. Considerando esse cenário de guerra, a MVDC também atua no resgate e em prover cuidados aos animais de países que vivenciam conflitos.

 

Cão abandonado junto a linha de trens próxima ao porto de Kiev na Ucrânia. Créditos: Vincent Mundy

 

Medicina veterinária de desastres no Brasil

A medicina veterinária de desastres surgiu com os novos desafios que exigem um envolvimento pluridisciplinar do setor público e privado. Dentre as principais atividades da MVD estão a necessidade de instaurar e manter planos de salubridade alimentar e de controle de pragas e vetores, além de proceder ao resgate de animais, para que, após a triagem, possam receber tratamento adequado 13. No Brasil, devido às suas dimensões e à diversidade de biomas, é comum a ocorrência de situações consideradas desastrosas; por exemplo, o ocorrido em Brumadinho e Mariana 14, as queimadas em diferentes tipos de biomas 15, o grande volume de chuvas como o ocorrido na Bahia 16 e os deslizamentos na região serrana do Rio de Janeiro 17 são considerados desastres naturais e ambientais, sendo alguns resultado da intervenção humana direta.

Após o desastre de Mariana, Minas Gerais, em 2015, a atuação dos médicos-veterinários nesses eventos foi reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), e em 2020 foi aprovado o Plano Nacional de Contingência para Desastres em Massa Envolvendo Animais. Em consonância surgiu a necessidade de capacitar os profissionais envolvidos, a fim de obter um trabalho mais técnico e bem-sucedido 18. Dentre as especializações da medicina veterinária destaca-se a medicina veterinária do coletivo, para atuar em desastres em massa, que engloba diversos aspectos inerentes ao cenário de crise, como bem-estar animal, zoonoses, comportamento animal, adoção, bioética e gestão de recursos humanos, incluindo educação humanitária, contrabalanceando assim os elementos que compreendem a saúde singular 19. Nessa óptica, foram instaurados diversos grupos de resgate veterinário no Brasil, como o Grupo de Resgate de Animais em Desastres (Grad), composto por profissionais de diferentes áreas de atuação, como médicos-veterinários, brigadistas, biólogos, bombeiros civis e outros de áreas afins, que atuam em situações de desastres 20. Portanto, o trabalho dos veterinários em interação com outros profissionais em desastres ambientais mostra-se eficaz e indispensável para o resgate de animais, além de também contribuir para o planejamento e o apoio à preparação para o enfrentamento de desastres futuros 18.

 

Medicina veterinária em resgate de animais em cenário de guerra

Os conflitos armados entre países têm sido considerados as principais causas de problemas de saúde e mortalidade durante a maior parte da história humana, e também são considerados desastres, devido à quantidade de vítimas geradas e à falência da infraestrutura do local 21. A Guerra do Afeganistão, anteriormente mencionada, gerou um grande número de refugiados, e muitos deles, além de deixarem seus locais de origem, também deixaram seus animais de companhia. Contudo, com a saída das tropas americanas do território afegão e com o auxílio da ONG Nowzad, em um projeto denominado Operação Arca, encorajado por Pen Farthing, ex-militar da Marinha Real Britânica e fundador da instituição, foram resgatados 156 cães e 133 gatos 22. Os animais que pertenciam a cidadãos afegãos refugiados foram resgatados e transportados por um jato Ilyushin IL-76, contratado pela companhia aérea Aviacon Zitotrans, da Rússia. Os animais resgatados foram triados e ficaram em quarentena no Aeroporto de Vancouver antes de serem encaminhados para seus tutores. Nesse contexto de resgate, também se destacam as atividades dos médicos-veterinários que acompanharam os animais durante a Operação Arca, garantindo sua saúde durante o transporte 23.

O cenário geopolítico mundial ficou abalado com a invasão dos soldados russos ao território ucraniano no início de 2022. Temos notícias de refugiados que, ao tentar fugir do conflito, alcançaram os países fronteiriços, muitos dos quais levando seus animais de companhia. Entre aqueles que não conseguiram levar seus animais, alguns os deixaram em abrigos com cartas ou outros meios de identificação para que conseguissem resgatá-los assim que se estabilizassem no países fronteiriços 24.

 

Refugiados ucranianos levando seus animais de estimação. Créditos: Dmytro Golovchenko

 

A situação dos cães de refugiados deixados em abrigos também chama a atenção das ONGs, com destaque para a International Fund for Animal Welfare (Ifaw). A instituição apoia abrigos da Ucrânia, fornecendo recursos como alimentos e suprimentos veterinários. Contudo, os suprimentos locais estão se esgotando, os abrigos podem ser danificados por bombardeios 25, e os animais deixados em abrigos correm risco de serem abandonados e morrerem de fome à medida que a guerra os cerca. Por isso, funcionários da ADA Foundation arriscaram a vida dirigindo-se até a Ucrânia para ajudar a esvaziar os abrigos e oferecendo espaços e serviços veterinários para os animais que os refugiados não podem manter ou transportar pela fronteira 26. Alguns países de fronteira se dispuseram a abrigar os refugiados da guerra e seus animais de estimação. De acordo com o jornal britânico The Independent, os refugiados ucranianos que carregam seus animais de companhia poderão levá-los para o Reino Unido sem documentação de vacinação e sem a necessidade de realizar quarentena 26. O país também estuda a possibilidade de custear as despesas veterinárias dos animais refugiados em seu território. Outros países como a Hungria, a República Tcheca, a Lituânia, a Polônia, a Romênia, a Eslováquia e a Alemanha também flexibilizaram a entrada de animais em suas fronteiras 25. O governo brasileiro, no início de março de 2022, autorizou a vinda de brasileiros que estavam na Ucrânia em um voo da Força Aérea Brasileira (FAB), que puderam também trazer seus animais de companhia 27.

 

Considerações finais

Os médicos-veterinários são profissionais que se destacam no resgate dos animais, por deterem conhecimento fisiológico e comportamental de cada espécie, bem como técnicas de contenção, sedação e recuperação, a fim de promover o resgate de forma ética e segura. Não há dados em relação à quantidade exata de animais resgatados ou que tenham fugido da Ucrânia junto com seus tutores. Essa lacuna dificulta a mensuração do verdadeiro impacto que o conflito vem trazendo em relação à quantidade de animais que residiam nas cidades invadidas. A esperança é que o conflito cesse e que tutores e seus animais refugiados retornem às suas cidades de origem.

 

Refugiados ucranianos levando seus animais de estimação. Créditos: Dmytro Golovchenko

 

 

Referências

01-ANDRADE, J. H. F. A Política de Proteção a Refugiados da Organização das Nações Unidas – sua gênese no período pós-guerra (1946 – 1952). 2006. 327 f. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) – Instituto de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

02-COUTINHO, R. S. R. ; GOMES, V. L. C. Clausewitz e os conflitos irregulares: um panorama sobre as “novas” guerras no século XXI. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 31, n. 62, p. 171-183, 2016.

03-MAKHOUL, J. ; CHEHAB, R. F. ; SHAITO, Z. ; SIBAI, A. M. A scoping review of reporting ’Ethical Research Practices’ in research conducted among refugees and war-affected populations in the Arab world. BMC Medical Ethics, v. 19, n. 36, p. 1-9, 2018. doi: 10.1186/s12910-018-0277-2.

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05-MILITÃO, B. 7 fatos para entender as tensões entre Rússia e Ucrania. Revista Galileu, 2022. Disponível em: <revistagalileu.globo.com/Sociedade/Historia/noticia/2022/02/7-fatos-para-entender-tensoes-entre-russia-e-ucrania.html>. Acesso em 19 de março de 2022.

06-CNN BRASIL. ONU registra 1.892 mortes de civis na Ucrânia desde o início da guerra. CNN, 2022. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/onu-registra-1-892-mortes-de-civis-na-ucrania-desde-o-inicio-da-guerra/>. Acesso em 19 de abril de 2022.

07-BBC NEWS BRASIL. Guerra na Ucrânia: o que o número de militares russos mortos nos diz sobre invação. BBC News Brasil, 2022. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61018939>. Acesso em 19 de abril de 2022.

08-REFUGEE AGENCY. Ucrânia. UNHRC, 2022.  Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/emergencias/ucrania>. Acesso em 19 de abril de 2022

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