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MVColetivo

Municípios e a atenção às pessoas com transtornos de acumulação

Cidades com melhor saúde humana também apresentam melhor saúde animal

Saúde e bem-estar animais foram associados a melhora da qualidade de vida humana em Curitiba, a nona maior área metropolitana do Brasil. Créditos: Fernando Gonsales Saúde e bem-estar animais foram associados a melhora da qualidade de vida humana em Curitiba, a nona maior área metropolitana do Brasil. Créditos: Fernando Gonsales

Introdução

O comportamento de acumular objetos e/ou animais tem-se mostrado um problema de saúde pública que ocorre em todas as comunidades e ainda é pouco compreendido. Programas de proteção e manejo populacional de animais de companhia de prefeituras municipais têm buscado definir protocolos e diferentes formas de abordagem para auxiliar indivíduos com comportamento de acumulação e seus animais. Esses programas e serviços realizam o levantamento dos casos de indivíduos com comportamento de acumulação, além de outros serviços gerais, como a microchipagem e a castração dos animais, a guarda responsável e a vigilância de maus-tratos, além de promoverem a adoção de animais. Embora os programas de proteção animal pareçam melhorar as condições de vida nos municípios, poucos estudos foram realizados até o momento para avaliar se tais associações de saúde humano-animais podem estar presentes em nível municipal. Nesse contexto, a identificação e o mapeamento de casos de indivíduos com comportamento de acumulação e dos programas de proteção animal de modo geral podem servir como parâmetros para avaliar as possíveis associações de saúde humano-animais a partir de dados obtidos pelas Secretarias Municipais de Meio Ambiente e Saúde. Um estudo recente realizado com 29 municípios da região metropolitana de Curitiba mapeou junto às respectivas secretarias as abordagens a acumuladores de animais e objetos e a presença de programas de proteção animal, juntamente com o índice de desenvolvimento humano e indicadores socioeconômicos para avaliar se há relação entre a saúde animal e a saúde humana nos municípios dessa que é a nona maior região metropolitana do Brasil.

 

Acumuladores de animais e possível impacto na saúde humana e animal

O comportamento de acumular objetos ou animais pode envolver autonegligência e estar associado a uma série de distúrbios psicológicos 1. É consenso que os casos de acúmulo de animais e de objetos estão associados à negligência do ambiente doméstico, resultando em prejuízos nas atividades normais da vida diária 2, devido à incapacidade de usar espaços da casa em face da desorganização e da desordem 3. Um estudo reportou que as circunstâncias mais citadas em denúncias foram condições insalubres do ambiente 2 e o acúmulo de lixo, sendo que ambos foram relatados em 88% dos casos analisados. Nesse mesmo estudo, o risco de incêndio foi alegado em 67% dos casos, seguido de odor desagradável (53%) e comportamento estranho (38%) 2. Um levantamento realizado nos Estados Unidos revelou que dois terços dos 71 casos de acúmulo de animais envolviam acúmulo de moderado a severo de jornais, roupas e recipientes 1. Adicionalmente, a infestação de insetos e roedores pode coexistir em ambientes onde há acúmulo de animais e/ou objetos, aumentando a possibilidade de transmissão de doenças 1.

O transtorno de acumulação de animais é um problema multifatorial, que pode apresentar características diferentes em cada caso. Desse modo, a forma de intervenção, o plano de tratamento e a gestão de cuidados dependem da avaliação individual de cada caso, levando em consideração os fatores biológicos, psicológicos, sociais e ambientais, bem como as limitações inevitáveis de recursos e serviços oferecidos 4.

Uma situação de acúmulo de animais é definida pela ausência de padrões mínimos relacionados a:

• sanidade, alimentação e acompanhamento veterinário;

• incapacidade de percepção da falha relacionada ao bem-estar animal, na família e no ambiente;

• comportamento compulsivo de adquirir mais animais mesmo em condições impróprias; e

• negação dos problemas expostos 1,4.

Portanto, o acumulador de animais não é caracterizado apenas pela sua quantidade excessiva, mas também pelo problema associado à falta de cuidados mínimos com a saúde e a qualidade de vida dos animais alojados 5. Estima-se que sejam reportados entre 700 e 2.000 novos casos de acumulação de animais por ano nos Estados Unidos 5. A acumulação de animais foi descrita pela primeira vez na literatura em 1981, chamada de posse de múltiplos animais, com 31 casos em Nova York 6; em seguida, 54 casos foram descritos ao redor dos EUA no final dos anos 1990 5. Mais recentemente, têm sido descritos casos no Canadá 7, na Espanha 8 e na Austrália 9. No Brasil, um estudo reportou um total de 1.114 animais envolvidos em 40 casos na cidade de Curitiba 10. A falta de informações sobre os acumuladores de animais, principalmente nos países em desenvolvimento, alerta para a necessidade de se desenvolverem mais estudos sobre esse complexo problema de saúde pública e suas consequências (Figura 1).

 

Figura 1 – A falta de informações sobre os acumuladores de animais, principalmente nos países em desenvolvimento, alerta para a necessidade de desenvolver mais estudos sobre esse complexo problema de saúde pública e suas consequências. Créditos: Fernando Gonsales
 

Animais em situação de acúmulo geralmente são mantidos em condições de superlotação, desnutrição, insalubridade e falta de cuidados veterinários, microambiente propício à contaminação e transmissão de doenças 11. Em consequência disso, frequentemente apresentam alterações clínicas, como infecções respiratórias, doenças gastrintestinais, parasitismo e má nutrição, além de outras evidências de negligência 12.

Devido à variedade de condições clínicas que esses animais podem apresentar, infere-se que também podem estar mais suscetíveis à contaminação por zoonoses. Um estudo reportou que nematoides com potencial zoonótico, como ascarídeos e ancilostomídeos, foram identificados em 14% e 9%, respectivamente, dos gatos sintomáticos testados, provenientes da residência de um acumulador de gatos 12. Alguns estudos demonstram que a maioria dos acumuladores de animais são pessoas idosas 8, o que é preocupante, pois os idosos têm um risco aumentado de contrair doenças zoonóticas, devido a condições médicas subjacentes que enfraquecem o sistema imunológico 2,5. Além disso, as condições ambientais insalubres podem favorecer a disseminação de zoonoses e a proliferação de insetos (potenciais transmissores de doenças) e roedores 13. A ocorrência de leptospirose, uma zoonose de grande impacto na saúde pública, pode ser mais frequente nas situações de acumulação, devido à grande quantidade de resíduos, lixo ou restos de alimento encontrada nesses ambientes, o que favorece a reprodução dos roedores. Observou-se que acumuladores de animais da cidade de Curitiba, PR, têm grande quantidade de cães e gatos em situações de alta promiscuidade e pouca ou nenhuma sanidade 10.

 

Relação de abordagem a acumuladores e programas de proteção animal com indicadores de saúde humana

Estudo recente realizado com 29 municípios da região metropolitana de Curitiba mapeou, junto às respectivas Secretarias Municipais de Saúde e Meio Ambiente, as abordagens a acumuladores de animais e objetos, a presença de programas de proteção animal e sete indicadores socioeconômicos (Figura 2) 14. Para os programas de proteção animal destinados aos indivíduos com comportamento de acumulação, foi questionado se as secretarias tinham contato com esses indivíduos, o número deles e sua localização no município. As Secretarias de Meio Ambiente também foram contatadas para verificar a presença de programas de microchipagem animal, controle populacional, guarda responsável e fiscalização de maus-tratos 14. Foram utilizados o Índice de Desenvolvimento Humano/Município (IDH-M) e o Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) como parâmetros para a saúde humana nos municípios.

 

Figura 2 – Mapa da região metropolitana de Curitiba, na qual estudo recente em 29 municípios avaliou, junto às respectivas Secretarias Municipais de Saúde e Meio Ambiente, as abordagens a acumuladores de animais e objetos, a presença de programas de proteção animal e sete indicadores socioeconômicos

 

Em geral, um alto nível de identificação de acumuladores de animais e objetos foi associado a municípios que apresentavam alto Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), população, densidade populacional e renda, e correlacionado à distância da capital, Curitiba. Baixos e muito baixos níveis de identificação de acumuladores foram associados a municípios de maior área, alto Índice de Vulnerabilidade Social (IVS), desigualdade social, analfabetismo e áreas rurais (Figura 3). Muito alta identificação de programas de proteção animal foi também associada a alto IDH-M, densidade e população, área urbana, alta renda per capita e área geográfica (Figura 4). De modo semelhante, baixos e muito baixos índices de programas de proteção animal foram em maioria explicados por baixa renda, analfabetismo e distância relacionados a alta população, urbanização e alto IDH-M. Em resumo, a melhor identificação de casos de acumuladores de animais e objetos e programas de proteção animal foi associada a melhores indicadores socioeconômicos e maior população, densidade e área urbana. Para saber se os municípios com melhores indicadores socioeconômicos estimulam demandas sociais para melhor identificação de casos de indivíduos com desordem de acumulação compulsiva e programas de proteção animal ou viceversa, são necessários futuros estudos 14.

 

 

 

Figura 3 – Baixos e muito baixos níveis de identificação de acumuladores foram associados a municípios de maior área, alto Índice de Vulnerabilidade Social (IVS), desigualdade social, analfabetismo e áreas rurais. Créditos: Fernando Gonsales
 

 

 

 

Figura 4 – Muito alta identificação de programas de proteção animal foi também associada a alto IDH-M, densidade e população, área urbana, alta renda per capita e área geográfica. Créditos: Fernando Gonsales
 

 

Considerações finais

Os municípios que apresentaram melhor identificação e mapeamento dos casos de acumulação de animais e programas de proteção animal estabelecidos estiveram associados à presença de indicadores de saúde humana e socioeconômicos favoráveis, como maior IDH, maior renda per capita, menor ISV e menor taxa de analfabetismo. Esses municípios também apresentaram maior densidade populacional e área urbana. Futuros estudos poderão avaliar se melhores indicadores de saúde humana e socioeconômicos estimulam a melhor identificação de casos de acumulação e o estabelecimento de programas de proteção animal ou vice-versa. A saúde e o bem-estar animais são associados à melhora da qualidade de vida humana na nona maior área metropolitana do Brasil.

 

Referências

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