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Direito Animal

Sentença condena réu a pagar indenização a animais vítimas de violência e maus-tratos

Judicialização terciária do Direito Animal – por meio da qual os animais defendem seu direitos em juízo

Matéria escrita por:

Vicente de Paula Ataíde Junior

20 de nov de 2023

Créditos: Zerbor Créditos: Zerbor

O Direito Animal é “o conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos dos animais não humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ecológica, econômica ou científica” 1.

Sendo o Direito Animal o ramo jurídico no qual os animais são sujeitos de direitos – não bens, nem coisas –, falar em judicialização do Direito Animal é falar no fenômeno em que os próprios animais vão a juízo para reivindicar seus direitos.

Como sujeitos de direitos materiais, os animais também passam a ser sujeitos de direitos processuais, dentre os quais o direito de ação, como decorrência lógica fundamental da garantia do acesso à justiça, atribuída a todos os sujeitos de direitos – tenham ou não personalidade jurídica –, conforme Art. 5º., XXXV, da Constituição.

Trata-se inequivocamente de judicialização, uma vez que ainda há resistência legal e prática à atribuição plena do status jurídico de sujeitos a todos os animais, de forma a realizar a universalidade de proteção prometida pela própria Constituição (Art. 225, § 1º., VII).

A judicialização do Direito Animal significa, em última análise, a inclusão dos animais não humanos em nossa comunidade moral por meio do direito e do processo.

É possível, no entanto, sistematizar três fases ou momentos históricos da judicialização do Direito Animal 1: 

a) judicialização primária: é a fase primordial ou embrionária da judicialização, na qual os animais são defendidos como bens ambientais. Não se trata propriamente de judicialização do Direito Animal, dado que os animais ainda não são considerados sujeitos de direitos, mas apenas elementos da fauna e da biodiversidade, relevantes apenas pela sua função ecológica; 

b) judicialização secundária: é a fase intermediária na qual os animais passam a ser defendidos em juízo como indivíduos conscientes, porém, por meio de ações titularizadas pelos seus responsáveis humanos, como nas ações contra condomínios ou em ações de Direito das Famílias 2, além do recente fenômeno das ações em que se pleiteia o transporte aéreo de animais de estimação na cabine dos aviões, junto com seus “pais humanos” 3;

c) judicialização terciária ou judicialização estrita do Direito Animal: é a judicialização do Direito Animal propriamente dita, por meio da qual os animais defendem seus direitos em juízo, representados na forma do Art. 2º., § 3º. do Decreto no. 24.645/1934.

A judicialização terciária do Direito Animal é novíssima, iniciada em 2020, com animais não humanos, notadamente cães e gatos, propondo demandas de reparação civil perante a justiça dos estados, representados, na forma do Decreto no. 24.645/1934, por seus “pais humanos” ou por entidades privadas de proteção animal. As primeiras demandas foram propostas em janeiro de 2020 perante as comarcas de Salvador, BA e de Cascavel, PR 4.

Hoje é possível encontrar ações de judicialização terciária com animais demandando em nome próprio em vários estados da Federação brasileira 5.

Momento importante da história da judicialização do Direito Animal foi o primeiro julgado de Tribunal de Justiça admitindo a capacidade processual dos animais, em setembro de 2021, produzido no caso Spike & Rambo, assim ementado:

RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. DECISÃO QUE JULGOU EXTINTA A AÇÃO, SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO, EM RELAÇÃO AOS CÃES RAMBO E SPIKE, AO FUNDAMENTO DE QUE ESTES NÃO DETÊM CAPACIDADE PARA FIGURAREM NO POLO ATIVO DA DEMANDA. PLEITO DE MANUTENÇÃO DOS LITISCONSORTES NO POLO ATIVO DA AÇÃO. ACOLHIDO. ANIMAIS QUE, PELA NATUREZA DE SERES SENCIENTES, OSTENTAM CAPACIDADE DE SER PARTE (PERSONALIDADE JUDICIÁRIA). INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 5º., XXXV, E 225o., § 1º., VII, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, C/C ART. 2º., §3º., DO DECRETO-LEI Nº. 24.645/1934. PRECEDENTES DO DIREITO COMPARADO (ARGENTINA E COLÔMBIA). DECISÕES NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO RECONHECENDO A POSSIBILIDADE DE OS ANIMAIS CONSTAREM NO POLO ATIVO DAS DEMANDAS, DESDE QUE DEVIDAMENTE REPRESENTADOS.

VIGÊNCIA DO DECRETO-LEI Nº. 24.645/1934. APLICABILIDADE RECENTE DAS DISPOSIÇÕES PREVISTAS NO REFERIDO DECRETO PELOS TRIBUNAIS SUPERIORES (STJ E STF). DECISÃO REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO 6.

Mas, certamente, o momento culminante de todo esse percurso histórico acaba de acontecer: foi publicada, em setembro de 2023, a primeira sentença de mérito de procedência, em ação de responsabilidade civil, proposta por animais.

Trata-se da primeira vez que o Poder Judiciário reconhece o direito animal à reparação de danos morais (ou danos animais 7).

 

O caso Tom & Pretinha 

Um homem portando uma arma de fogo, em maio de 2021, efetuou vários disparos, sem nenhum motivo aparente, contra os cães Tom e Pretinha. Imediatamente a Polícia Militar foi acionada, socorrendo os cães e encaminhando-os ao atendimento médico-veterinário.

Constatou-se que o cão Tom foi atingido por um disparo em uma das patas, gerando a fratura do osso olécrano. Já a cadela Pretinha foi alvejada com dois tiros, um no abdômen e outro na pata direita traseira.

Como o autor dos disparos não forneceu nenhum tipo de assistência às vítimas caninas, elas ajuizaram, representadas pelo tutor e em litisconsórcio com ele, ação de responsabilidade civil, pleiteando a reparação pelos danos morais, estéticos e materiais sofridos, perante a 1ª. Vara Cível da Comarca de Porto União, SC, sob o n°. 5002956-64.2021.8.24.0052.

Após a citação, a defesa do réu e a tentativa frustrada de conciliação, houve produção de provas e adveio a sentença judicial.

Ao contrário do que defendeu o réu na contestação e do que entendeu o Ministério Público em primeiro grau, a sentença afirmou a legitimidade dos animais para pleitear os seus direitos em juízo, tomando como base o já referido julgado da 7ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, no caso Spike & Rambo.

Quanto ao mérito, o juiz afastou a tese da legítima defesa alegada pelo réu, reconhecendo as lesões sofridas pelos autores não humanos, com base nos documentos juntados nos autos. O réu foi condenado ao pagamento de indenização pelos danos materiais sofridos pelo tutor com as despesas veterinárias e ao pagamento de indenização pelos danos morais dos animais, esta última no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) para cada um dos cães.

É importante salientar que a sentença deixou claro que o valor da indenização por danos morais pertence aos animais, pelo que deverá ser usufruído em benefício exclusivo deles próprios.

A sentença assim registrou: 

Pelas suas condições, de animais, o referido valor de indenização deverá ser usufruído pelos autores (se ainda vivos), através de tratamentos dedicados exclusivamente a eles, como por exemplo, banho, tosa, massagem, tratamento estético, petiscos, alimentação, etc., que deverá ser pago pelo requerido à clínica ou ao profissional que fornecer os serviços, à escolha do dono.

A decisão marcou a história do Direito Animal como a primeira sentença de mérito de procedência da fase de judicialização terciária a admitir a reparabilidade civil dos danos morais sofridos por animais. 

No célebre caso Spike & Rambo, que originou o primeiro julgado de Tribunal de Justiça admitido a capacidade processual dos animais, a sentença de primeiro grau foi de improcedência quanto à reparabilidade civil por danos morais aos animais, já tendo transitado em julgado.

A sentença do caso Tom & Pretinha já estipulou os caminhos que deverão ser adotados na fase de cumprimento determinando que o proveito econômico seja revertido em prol do bem-estar dos animais mediante procedimento por ela mesma definido.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, quando julgar os recursos contra a sentença, terá a oportunidade de ladear a vanguarda aberta pelo Tribunal do Paraná, reafirmando a capacidade processual dos animais e, indo além, decidindo sobre a extensão dos danos sofridos por Tom e Pretinha, inclusive no que tange à reparabilidade dos danos estéticos sofridos pelos animais, negada pela sentença.

Mais uma vez vale lembrar aqui a célebre frase do grande escritor russo Fiódor Dostoiévski: “Quantas ideias já houve na Terra, na história humana, que ainda uma década antes eram inconcebíveis, mas de repente chegou sua hora misteriosa e elas se manifestaram e se espalharam por toda a Terra?” 8

 

Referências

1-ATAIDE JUNIOR, V. P. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters, 2022, p. 345-348.

2-RODRIGUES, N. T. D. ; FLAIN, V. S. ; GEISSLER, A. C. J. O animal de estimação sob a perspectiva da tutela jurisdicional: análise das decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 11, no. 22, p. 83-119, 2016.

3-’Não me ajudaram em nada’, diz tutor da cachorra Pandora, desaparecida em Guarulhos, sobre companhia aérea. Disponível em: <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/01/10/nao-me-ajudaram-em-nada-diz-tutor-da-cachorra-pandora-desaparecida-em-guarulhos-sobre-companhia-aerea.ghtml>. Acesso em 16 de janeiro de 2022.

4-ATAIDE JUNIOR, V. P. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil, p. 348.

5-ATAIDE JUNIOR, V. P. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil, p. 348-351.

6-TJPR, 7ª. Câmara Cível, Agravo de Instrumento 0059204-56.2020.8.16.0000, relator juiz MARCEL GUIMARÃES ROTOLI DE MACEDO, unânime, julgado em 14/9/2021, disponibilizado em 23/9/2021.

7-GONÇALVES, M. M. Dano animal. Lumen Juris, 2020. p. 280.

8-DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. 3. ed. Editora 34, 2021, v. 1, p. 430.