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Animal silvestre é pet?

Argumentos favoráveis

Matéria escrita por:

José Mauricio Barbanti Duarte

17 de mar de 2024


Arara-canindé (Ara ararauna). Créditos: Pongsiri

 

O Brasil é um dos países com maior diversidade de espécies animais do mundo. Entretanto, sem tradição de uso dessa biodiversidade como em outros países, que, ao mesmo tempo em que exploram seus recursos naturais, também os preservam.

Explorarei nesse texto várias abordagens para demonstrar o que me faz acreditar que a criação comercial de animais selvagens para companhia é uma atividade que deveria ser estimulada em nosso país e deveria se tornar uma das ferramentas importantes para a conservação das espécies de nossa fauna.

 

Sustentabilidade comercial

A criação comercial de animais de companhia é um negócio rentável e tem atraído empreendedores. A sustentabilidade econômica gera a perenização da criação. Inúmeras criações conservacionistas levadas como hobby fecham as portas quando seus responsáveis falecem, por exemplo, e os animais desses criadouros lotam os Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas/Ibama) ou são abandonados.

Entretanto, quando a criação é um bom negócio, outras pessoas assumem o empreendimento. Uma criação que seja economicamente um bom negócio, não gera problemas para os órgãos ambientais.

 

Sustentabilidade populacional

A sustentabilidade da criação de animais selvagens para companhia decorre do fato de que, após a implantação dos plantéis iniciais (geralmente construídos a partir da doação de animais apreendidos e excedentes nos Cetas) não há necessidade de captura de animais de vida livre para a continuidade da produção. Não há interferência negativa nas populações naturais, e ao mesmo tempo são ofertados ao mercado animais que atendem a uma demanda enorme.

A sobrecarga de animais nos Cetas gera pressão para a soltura na natureza sem os critérios técnicos que deveriam norteá-la. Sou crítico ferrenho da soltura de animais na natureza quando não há necessidade populacional conhecida (depressão endogâmica e efeito Allee). A destinação de animais dos Cetas para os criadouros comerciais poderia ser indicada por um tempo estipulado, aliviando essas estruturas até que o sistema de combate ao tráfico melhorasse e a apreensão dos animais ilegalmente mantidos em cativeiro ou traficados fosse reduzida significativamente.

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Cacatua negra (Calyptorhynchus banksii) sob cuidados humanos. Créditos: Marcelo Silva Gomes / Adriana Labate

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Efeito da criação de animais de companhia na conservação das populações naturais

A companhia de animais selvagens começou com os indígenas, que mantinham macacos, caititus, papagaios, araras e jacamins. Isso se acentuou com a colonização dos portugueses, que se interessaram pelas aves canoras e pelas belas espécies de nossa fauna. No último século houve necessidade de regulamentar a criação sob cuidados humanos. A demanda por animais de companhia não convencionais era atendida exclusivamente pelo tráfico de animais retirados da natureza. Na década de 1980 foram dados os primeiros passos na gestão da fauna pelo estado, tentando normatizar o sistema estabelecendo categorias para os criadouros, desde os amadores até os comerciais. Um grande esforço por parte do Ibama – o órgão licenciador e fiscalizador – para estimular os criadouros aconteceu nas décadas de 1980 e 1990, e no início deste século já existiam muitos empreendimentos regularizados que se adequavam às normas.

Contudo, neste século, uma nova ideologia floresce no Ibama, cujos técnicos ligados à fauna passaram a dificultar a atividade dos criadores, propondo normativas cada vez mais restritivas, com o objetivo de sufocar a criação comercial de fauna. Essa ideologia é pautada em princípios que grande parte do mundo não segue e que o Brasil também não deveria seguir, porque é signatário da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que reconhece o papel da criação comercial como mecanismo de uso sustentável para conservação da fauna. A CDB, em seu Artigo 11, recomenda que os países signatários devem “adotar medidas econômica e socialmente adequadas que atuem como incentivos para a conservação e o uso sustentável de componentes da diversidade biológica”; e no seu Artigo 9 recomenda “adotar medidas para a conservação ex situ dos componentes da diversidade biológica”.

A demanda por animais selvagens para companhia continua alta, e quanto menos criadouros existem, mais a demanda é atendida pelo tráfico e pelas populações naturais, que continuam sendo dilapidadas.

Uma pesquisa encontrou uma forte correlação entre os animais mais criados e os mais traficados, e ela alega que a criação não está diminuindo o tráfico, e sim fomentando-o. Nessa pesquisa há uma armadilha estatística. A correlação existe, mas não há uma dependência dessas variáveis – ou seja: não é porque há mais criação que há mais tráfico; pelo contrário, há mais trafico e criação porque há mais demanda por essas espécies. Ninguém cria e nem trafica animais que não são demandados pelo mercado. A demanda existe, independentemente da criação comercial, e, se não houver animais provenientes de criação, essa demanda será integralmente atendida por animais advindos do tráfico.

A demanda por animais criados em cativeiro precisa ser maior que a daqueles vindos da natureza, em função dos animais serem mais mansos, não portarem doenças e terem preços acessíveis. Isso só será atingido com um pujante setor de criação, com estímulo do estado e boa técnica.

Há ainda que se considerar a reserva genética das populações de cativeiro. Pode haver necessidade de que essa reserva seja utilizada para restaurar a diversidade genética em populações selvagens que passaram por gargalos genéticos e corram riscos. Apesar de essa não ser a função precípua dos criadouros comerciais, esse plantel poderá ser aproveitado para conservação ex situ.

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Periquito (Undulatus melopsittacus) sob cuidados humanos. Créditos: HGalina

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Evolução da criação e das áreas técnicas correlatas

Nos últimos 30 anos, a criação e a medicina de animais silvestres passaram por transformações para a chegada de animais legalizados ao mercado. No processo formou-se uma cadeia produtiva que engloba desde rações especializadas, gaiolas, brinquedos e suprimentos, chegando aos serviços veterinários. Há 35 anos, os animais eram alimentados com misturas caseiras, que provocavam problemas de saúde e vida curta. Somente os zoológicos dispunham de médicos-veterinários qualificados. A criação de um mercado economicamente robusto e a chegada de muitos animais às mãos de particulares com alto valor agregado gerou uma demanda por profissionais da área. Hoje há inúmeros profissionais com formação sólida em medicina de animais selvagens, manejo nutricional e manejo reprodutivo que atuam na conservação de espécies selvagens ou em centros de triagem e reabilitação de animais selvagens, impulsionados pelo mercado pet.

Nas criações comerciais, há novas tecnologias de manejo, nutrição e reprodução, com evolução significativa. Técnicas iniciadas em criadouros comerciais se difundem para os demais elos da produção ex situ de animais selvagens cujo objetivo é a conservação para recuperação de espécies ameaçadas de extinção, como o pato-mergulhão, o papagaio-de-cara-roxa e a harpia, entre outros. A maioria das técnicas de criação utilizadas nessas espécies nasceram nos criadouros comerciais.

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Iguana (Iguana iguana) sob cuidados humanos. Créditos: Marcelo Silva Gomes / Adriana Labate

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Adequabilidade da espécie selvagem como animal de estimação

Animais domésticos têm longa história de seleção para se adaptarem ao convívio com os seres humanos, o que não acontece com os animais selvagens. É preciso entender o comportamento particular de cada espécie para saber o que esperar delas como animais de estimação. Para os papagaios poderem viver como animais de companhia, emprega-se a técnica do imprinting, separando-os da mãe precocemente, para que dependam de seres humanos. Esses animais identificam os seres humanos como seus conspecíficos e se relacionam com pessoas como o fariam com os outros indivíduos de sua espécie.

Os papagaios são espécies monogâmicas e territorialistas quando adultos. Um animal que conviveu bem com toda a família durante seus primeiros 4 anos de vida (juventude), na puberdade pode se tornar agressivo, com exceção de uma pessoa que ele tenha escolhido como sua parceira.

Por outro lado, uma capivara tem um comportamento social muito rebuscado e se tornará companheira de todos os membros da família, mas atacará membros externos, como visitas.

Para algumas espécies, como aves canoras ou répteis, o imprinting não é necessário, porque não se busca uma interação tão complexa com o ser humano. Uma cobra mansa poderá ser manipulada sem problemas, mesmo não sendo um animal “imprintado”, mas as interações com seu tutor serão muito limitadas.

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Arara-canindé (Ara ararauna) e papagaio-do-mangue (Amazona amazonica) sob cuidados humanos. Créditos: Marcelo Silva Gomes / Adriana Labate

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Bem-estar animal

Os criadouros comerciais dependem da saúde e do bem-estar dos animais sob seu manejo para atingirem os lucros necessários. O Brasil vem investindo em tecnologia e estrutura para propiciar bem-estar aos animais e, consequentemente, aumentar os índices produtivos.

Animais com nutrição e manejo inadequados não se reproduzem, e, consequentemente, dão prejuízo. Condições pobres e problemáticas de manejo em cativeiro levam a estresse e a altos níveis de cortisol, com efeitos avassaladores para a homeostase e a reprodução. Criadores comerciais dependem de que suas matrizes tenham vida longa e produtiva, e por isso precisam estar atentos ao seu bem-estar.

Animais silvestres comprados como pets requerem bom manejo e adequado bem-estar. Em geral, o local de manutenção desses animais não é igual ao dos criadouros, em viveiros espaçosos e bem ambientados, mas em geral atende às expectativas.

Um trabalho realizado pelo nosso grupo de pesquisa demonstrou que os níveis de cortisol de papagaios em cativeiro (em zoológicos, criadouros ou como pets) se mostraram muito abaixo dos níveis encontrados em animais de vida livre (DOI: 10.1093/conphys/coz097).

Animais mantidos sob cuidados humanos geralmente não demonstram estresse, mas apenas a ausência de estresse não caracteriza o bem-estar. Hoje considera-se o sentido de “uma vida que vale a pena viver” a mais avançada definição de um bem-estar adequado.

A grande maioria dos animais selvagens de estimação tem uma “boa vida”, e isso varia com as especificidades das diferentes espécies. A exigência de uma serpente é muito diferente da de um papagaio ou da de um pássaro canoro.

Um pássaro em uma gaiola pode ter suas exigências comportamentais atendidas, em especial aquelas que levam à sensação de conforto, como alimentação de boa qualidade, água e conforto térmico. Nosso estudo realizado com papagaios mostrou que os menores níveis de cortisol foram observados no grupo de animais mantidos como pets, muito abaixo dos de animais de vida livre, e ligeiramente abaixo daqueles encontrados em animais de zoológicos e de criadouros comerciais.

Outro ponto que mostra a qualidade de manejo dos animais sob cuidados humanos é a sua sobrevida. Em cativeiro, geralmente os animais vivem o dobro do que os animais de vida livre, mostrando que o manejo é capaz de atender a aspectos ligados ao metabolismo basal, bem como à sanidade.

O voo muitas vezes é tido como uma necessidade básica das aves, e alega-se que em uma gaiola isso não seria possível. Entretanto, o voo em animais de vida livre está relacionado ao deslocamento para encontro de alimento, à defesa de território e à fuga de predadores. Se nas gaiolas são oferecidos alimentos, proteção e território (mesmo que limitado), isso atende às necessidades básicas da ave. O voo não é um status modulador do bem-estar das aves e isso pode ser comprovado de várias formas, como por exemplo, colocando-se muitas opções de poleiros num grande viveiro de papagaios. Eles raramente voarão e preferirão se deslocar pelos poeiros.

De modo geral, as aves cantam em defesa do território e para atrair parceiros. Se cantam na gaiola, significa que estão em bom status fisiológico para a busca da reprodução.

Pode ser mais complexo atender às exigências de algumas espécies, como primatas e alguns carnívoros, mas são casos menos relevantes no universo de espécies hoje mantidas como pets no Brasil. A maioria delas tem tido condições de manter “uma vida que vale a pena viver” sob os cuidados humanos.

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Jiboias (Boa constrictor) sob cuidados humanos. Créditos: Marcelo Silva Gomes / Adriana Labate

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Suporte emocional e companhia

As pessoas desejam manter animais próximos ao seu convívio por fornecerem suporte emocional e companhia. Algumas desejam formas de interação não convencionais, buscando os animais silvestres.

Existem especificidades no convívio com animais que só podem ser atendidas por espécies silvestres. Uma serpente pode ser alimentada uma vez ao mês, abrindo possibilidades de convívio com pessoas que viajam muito e não estão diariamente em casa.

A companhia de um animal que tenha boa qualidade de vida, com impacto positivo na economia do país e que ainda possa contribuir com a conservação das populações naturais de sua espécie pode ser positiva. Assim, defendo a possibilidade de que nossas espécies silvestres sejam pets, produzindo um círculo virtuoso para a economia, para a conservação e para o bem-estar animal e do ser humano.