A tragédia de Mariana, MG, relembra a importância da medicina veterinária de desastres

Rotina de salvamento de animais atolados na região acometida pelo rompimento da barragem em Mariana, MG. Conter e controlar o animal resgatado são fatores cruciais para o sucesso do resgate. A médica-veterinária Carla Sassi (acima) também atua junto ao Itec, e é outra lider importante dentro da operação. Créditos: Arthur Barretto
Embora pouco conhecida no Brasil, a medicina veterinária de desastres é a especialidade em que atuam médicos-veterinários treinados para lidar com as necessidades dos animais atingidos por catástrofes. Para muitos, pode parecer pouco importante dedicar tempo aos animais em situações calamitosas, principalmente quando se considera a enorme demanda das pessoas vitimadas nessas situações e a relativa indisponibilidade de voluntários para auxiliá-las. No entanto, é importante levar em conta que os animais são seres sencientes e, por isso, eventos catastróficos os fazem sofrer, seja por meio de lesões físicas, seja pela fome ou pela desidratação.
Somente por estes aspectos já se entenderia como pertinente e imprescindível o papel desempenhado pelos veterinários durante os desastres; além de tudo isso, porém, ainda há que se destacar o quão importante o salvamento desses animais de companhia será para o bem-estar emocional de seus tutores, já terrivelmente abalados pela perda dos bens materiais e, por vezes, de entes queridos.
O conceito de Saúde Única, inicialmente proposto por Hipócrates em 400 a.C., e reforçado posteriormente por Louis Pasteur, também merece ser recordado nessas situações. A delicada inter-relação que envolve saúde humana, saúde ambiental e saúde animal obviamente está sujeita às terríveis consequências das situações de calamidade pública. Animais errantes, desprovidos de alimentação e água potável após catástrofes, por exemplo, podem disseminar zoonoses e agravar a saúde de muitos indivíduos prejudicados pelo desastre ou mesmo daqueles apenas acometidos pelo estresse da situação.
Mas afinal de contas, o que é um desastre? Esse termo, amplamente utilizado em situações calamitosas, envolve problemas de ocorrência intencional ou não que afetam uma sociedade, desencadeando perdas e impactos humanos, materiais, econômicos ou ambientais disseminados, os quais excedem a capacidade da comunidade afetada de lidar com o problema empregando seus próprios recursos. A complexidade do evento está intimamente relacionada à importância de suas consequências, e estas, obviamente, dependem de quão preparada esteja a comunidade envolvida para lidar com tais adversidades. Nesse sentido, é fundamental não apenas a existência de um plano de gestão de riscos que se concentre na população suscetível, mas também, nos animais atingidos pelo mesmo problema.
Em muitos países desenvolvidos, os planos de ação para situações de desastre são concebidos com base nos riscos de ocorrência do evento, na vulnerabilidade da sociedade e na sua incapacidade para lidar com as consequências do problema. Portanto, independentemente do evento catastrófico ser pequeno ou enorme, é fundamental que exista um protocolo a ser seguido quando de sua ocorrência. Nesse contexto, o manejo dos desastres precisa incluir quatro estratégias principais: prevenção e atenuação do desastre, preparação, resposta e, finalmente, recuperação. Tais elementos se interrelacionam em um ciclo, e o bom desenvolvimento de uma etapa está intimamente relacionado ao êxito da etapa subsequente. Os profissionais que possuem formação de oficial de controle animal são vitais durante a execução das operações. No Brasil quem promove a formação de oficiais de controle animal é o Instituto Técnico de Educação e Controle Animal (Itec – http://www.itecbr.org) instituição da qual faz parte a médica-veterinária coordenadora de toda a operação de resgate e abrigo dos animais Ana Liz Bastos.
Características identificadas na ação de resgate de animais acometidos pelo desastre ambiental em Mariana, MG | |
Cenário | |
Pontos positivos |
1) Mesmo sem um plano de ação estruturado, o resgate dos animais teve início prontamente; 2) Os animais foram alojado em galpões, e os cães, em particular, identificados com placa na coleira e microchip; 3) Havia conhecimento da técnica de resgate de animais de grande porte (desatolamento de equinos, por exemplo), que é crucial para permitir o salvamento sem complicações para o animal e para as pessoas envolvidas no procedimento; 4) Havia boa disponibilidade de voluntários para auxiliar nos procedimentos de resgate e cuidado dos animais; 5) Houve importante auxílio da equipe do corpo de bombeiros. |
Pontos negativos |
1) Inexistência de instalações apropriadas para acomodar os animais, particularmente as espécies de produção; 2) Decorridas várias semanas, nem todos os animais puderam ser resgatados devido à inesitência de um plano de ação que contemplasse o preparo da comunidade para lidar com situações calamitosas; 3) Havia pouco conhecimento do manejo etológico por parte dos voluntários, tornando difícil não apenas resgatar, mas, principalmente, manter em abrigos os animais resgatados, particularmente as espécies de produção; 4) A gestão de voluntários era inadequada, fazendo com que muitas ações desnecessárias ou até mesmo inapropriadas fossem realizadas (por exemplo, não cumprimento de prescrições médico-veterinárias por parte dos voluntariado, prejudicando a recuperação dos animais enfermos). |
A etapa de atenuação envolve a prevenção da situação de emergência e de seus efeitos mais severos, por meio de medidas estruturais (alojamento de animais em local distante dos pontos vulneráveis, manejo de pastagens etc.) e não estruturais (programas educativos, nutrição, saúde pública etc.). A preparação está centrada na criação de condições que garantam, rapidamente, os recursos e serviços necessários para lidar com os efeitos do desastre, incluindo sistemas de avisos, programas de vacinação, abrigos para pessoas e animais, métodos de evacuação, estocagem de alimento e água, além da identificação dos animais. Em Mariana não havia instalações para acomodar os animais e, para agravar a situação, o desastre ocorreu durante a madrugada. Dessa forma, foram atingidos tanto animais de companhia quanto os de produção, cujo resgate é mais trabalhoso, demandando preparo da equipe e condições adequadas de alojamento, muito mais difíceis de serem conseguidas quando não existe um planejamento prévio.
A resposta inclui as ações que serão tomadas imediatamente antes, durante ou logo depois do desastre, buscando minimizar seus efeitos. Tais medidas incluem, por exemplo, clínicas veterinárias estáticas ou móveis, operações de busca e salvamento, alimentação, abrigo temporário e reintegração de proprietários e animais. Nessa etapa, as equipes que vêm atuando em Mariana têm abrigado os animais resgatados em galpões, mantendo-os em condições relativamente apropriadas, inclusive com a identificação dos cães com placa na coleira e microchip, até que possam deixar o abrigo e retornar para seus tutores antigos ou novos. Por fim, a recuperação preconiza o suporte coordenado das comunidades afetadas por meio da reconstrução da infraestrutura física, da recuperação do bem-estar emocional, social, econômico e físico. Dentre as medidas envolvidas nesses objetivos estão a disponibilidade de serviços veterinários – e não apenas atitudes voltadas à saúde humana –, além de projetos de redução de risco e planos de contingência.
Nos Estados Unidos, os planos de ação criados para lidar com situações calamitosas incluem a participação ativa de médicos-veterinários não apenas por sua importância no contexto da saúde única, mas, também pelo reconhecimento do importante vínculo emocional existente entre homem e animal.
Dessa forma, os planos de gestão de riscos e ação naquele país estão estruturados nas esferas local, estadual e federal, por meio dos Community Animal Response Teams, State Animal Response Teams (ou Veterinary Medical Response Corps) e National Veterinary Teams, respectivamente. O treinamento intenso desses profissionais envolve o reconhecimento de materiais perigosos e medidas de descontaminação, saúde pública e educação comunitária, manejo do bem-estar emocional, técnicas de primeiros socorros e suporte básico em seres humanos, manejo e cuidado de animais, transporte de animais de grande porte, vacinação em massa, triagem e eutanásia.
Embora voluntários tenham se esforçado para auxiliar pessoas e animais vitimados em Mariana, o Brasil infelizmente, não dispõe de um sistema estruturado de gestão de riscos e resposta aos desastres, sejam eles naturais ou não, que contemple as necessidades dos animais, tornando óbvia a necessidade de revisão do planejamento e/ou lei nacional focada na abordagem das calamidades. O médico-veterinário deve integrar, de maneira efetiva, o rol de profissionais envolvidos na elaboração e execução dos planos existentes, permitindo que se estabeleçam grupos de salvamento animal, projetos comunitários, colaboração com organizações humanitárias, atualização e treinamento de veterinários da comunidade, simulações e divulgação pública das medidas preventivas que atentem à importância dos animais para o bem-estar da própria comunidade afetada.
Além do óbvio benefício que a participação dos veterinários traz para a vida animal, sua profunda formação em saúde pública e os conhecimentos em zoonoses e epidemiologia podem auxiliar na prevenção de epidemias na população atingida pelo desastre. A ação que envolve o resgate e manejo dos animais atingidos pelo desastre em Mariana possui vários pontos positivos e negativos, sendo fundamental que se faça uma reflexão profunda sobre as ações possíveis, as necessárias e o cenário ideal nesse desastre em particular. Dessa forma, em situações futuras a atuação do médico-veterinário e dos voluntários envolvidos no salvamento dos animais poderá se inserir no plano de ação de maneira mais explícita, inclusive nas medidas preventivas, fazendo jus ao conceito de saúde única.
Referências sugeridas
ALEXANDER, D. Principles of emergency planning and management. Terra Publishing, 2002.
DESTREZA, K. Katrina response: rescue and recovery. Veterinary Emergence and Critical Care Symposium. New Orleans, 2007.
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