O papel da Unidade de Vigilância em Zoonoses (UVZ) na integração da saúde com o meio ambiente

Histórico
O Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) foi conceitualmente uma unidade vinculada à Secretaria Municipal de Saúde para o controle da raiva em vários municípios brasileiros nas décadas de 1970 e 1980, quando a doença era um grave problema de saúde pública (Figura 1) 1. Embora municipal, a estrutura e as ações do CCZ seguiam o recém-criado Programa Nacional de Profilaxia da Ravia (1973), elencado como um dos programas prioritários da política de saúde no Brasil. Esse programa previa a realização de atividades sistemáticas para combater a raiva humana tais como tratamento preventivo, diagnóstico laboratorial e vigilância epidemiológica, educação em saúde, vacinação canina e captura de cães 2.
Dentro do cenário da época, a principal forma de controle da raiva era o controle da circulação do vírus rábico em populações de animais domésticos, principalmente em cães. Tanto a vacinação quanto a captura e eutanásia de animais errantes eram caracterizados como medidas fundamentais por recomendação do 6º Informe Técnico da Organização Mundial de Saúde, publicado também em 1973 3. Dessa forma, durante quase duas décadas os CCZs realizaram a captura indiscriminada e a eutanásia sumária de cães em todo o território nacional, principalmente em áreas endêmicas para a raiva canina e humana.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Sociedade Mundial de Proteção aos Animais (WSPA) publicaram em 1990 o Guia para Manejo de População Canina (Guidelines for Dog Population Management), onde ficou provado que a captura e a eutanásia de animais não se mostraram eficazes pois não atuavam na raiz do problema, ou seja, a falta de guarda responsável por parte dos tutores, levando ao excesso de nascimentos e ao grande número de cães nas ruas 3. Por outro lado, nessa época, não havia recursos da saúde disponíveis para subsidiar uma estratégia eficaz na educação em guarda responsável e no controle da natalidade por esterilização cirúrgica.
Embora a realidade social fosse completamente outra, se tais ações tivessem sido implantadas de forma continuada desde então, passados 25 anos talvez o problema estivesse sob controle ou até mesmo resolvido. Além disso, os CCZs foram historicamente conhecidos (estigmatizados) e concebidos para serem “canis municipais” e não como órgãos de vigilância e controle de zoonoses per si.
Pouco tempo depois, em 1992, a OMS publicou o 8º Relatório do Comitê de Especialistas em Raiva, mostrando que não havia provas de que o extermínio em massa de cães tinha impacto significativo na densidade populacional ou no controle da raiva 3. A partir de então, alguns CCZs passaram a responder processos civis e penais, inclusive do Ministério Público, devido às eutanásias de filhotes e cães adultos sadios, que eram realizadas sem respaldo legal e sem justificativa de riscos à saúde animal e/ou à saúde pública 4. Seis anos depois, no artigo 32 da Lei Federal n. 9.605/1998 5, esse ato foi enquadrado como crime contra a fauna, com sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
Dessa forma, os CCZs iniciaram gradativamente um processo de reestruturação dos seus serviços, com o foco na vigilância e no monitoramento das diversas zoonoses, e não mais somente no recolhimento de cães. Os CCZs passaram a assumir o papel de unidades de saúde pública cujo objetivo era desenvolver ações de vigilância de zoonoses, investigações eco-epidemiológicas e monitoramento de doenças transmitidas por vetores. Suas atividades primordiais contemplaram ainda o controle de vetores (principalmente da dengue), de animais sinantrópicos e de animais potencialmente hospedeiros ou reservatórios de doenças 6.
Em 2002, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) publicou a Portaria 52/2002 (reeditada em 2003 e 2007) com um Guia de Projetos Físicos de Unidades de Controle de Zoonoses e Fatores Biológicos de Risco contendo diretrizes para os objetivos gerais e específicos, a classificação do CCZ (incluindo canil municipal para cidades com população de até 15.000 habitantes), sua estrutura física mínima e usos das instalações 6.
Finalmente, em 2014, a Portaria 1.138/2014 do Ministério da Saúde (MS) redefiniu as principais ações e os serviços de saúde voltados para a vigilância, prevenção e controle de zoonoses, incluindo a recomendação de adotar medidas de biossegurança visando diminuir ou impedir o risco de transmissão de zoonoses e de acidentes com animais peçonhentos e venenosos; realizar necropsias para coleta de amostras e investigação de animais suspeitos de zoonoses; realizar eutanásia de animais em casos indicados; e ainda desenvolver e executar estratégias e ações relacionadas a animais de importância para a saúde pública 7.
Unidades distribuídas no Brasil
Entre as décadas de 1980 e 1990, o Brasil possuía apenas dezesseis CCZs 2. O primeiro deles foi criado em 1973 na cidade de São Paulo para controlar a epidemia de raiva 8, chegando a realizar até trinta mil eutanásias por ano entre 1997 e 2002 9. Ao longo dos anos, houve uma mudança em suas estratégias e planos de ação. Hoje sua importância nacional e internacional é reconhecida pelo Ministério da Saúde (MS), que o considera como um “Centro de Referência Nacional para Zoonoses Urbanas” desde 1985, e pela OMS como um “Centro Colaborador para Treinamento e Pesquisa em Zoonoses Urbanas” desde 1998 10. O Brasil possui atualmente 277 Unidades de Vigilância de Zoonoses implantadas, com 152 (54,8%) localizadas na região Sudeste, a maior concentração nacional (Figura 2).
Apesar de contar atualmente com apenas sete CCZs (Araucária, Curitiba, Foz do Iguaçu, Maringá, Pinhais, Ponta Grossa e São José dos Pinhais), o estado do Paraná foi o primeiro a controlar a raiva, com o último caso humano com transmissão por cão registrado em 1977 11. Desde a década de 1930, a prefeitura de Curitiba realizava a captura de animais errantes, porém o serviço de apreensão só foi oficialmente criado em 1972, vinculado inicialmente à Secretaria Municipal de Saúde, e em 1992 foi fundada a Divisão de Controle de Zoonoses e Vetores 12. Até o ano de 2005, a eutanásia de cães era feita em massa, chegando a dezoito mil em um único ano 4.
Com o encerramento das atividades da câmara de gás, o recolhimento de animais passou a ser seletivo, segundo o Decreto 642/2001 13, gerando a necessidade de criar uma unidade que pudesse atender a demanda voltada à questão do abandono e dos maus-tratos. Soma-se ainda o fato de que a partir de 2001, os conceitos de guarda responsável, bem-estar animal e manejo populacional tornaram-se mais conhecidos e compreendidos pela sociedade, exigindo um posicionamento mais efetivo do poder público. Somente em 2009 foi criada a Rede de Defesa e Proteção Animal de Curitiba, estrutura vinculada à Secretaria Municipal do Meio Ambiente, cujo objetivo é a saúde e a proteção animal e o combate aos maus-tratos.
O elo existente entre saúde ambiental, pública e animal levou à criação da Portaria Conjunta n. 01/2014 14 (Figura 2), das Secretarias Municipais de Saúde e de Meio Ambiente de Curitiba. Essa união teve por objetivo as ações de sobreposição de ambas as secretaria como educação, capacitação e formação com o apoio de universidades e outros órgãos, vigilância e monitoramento de zoonoses, desenvolvimento de projetos de pesquisa em saúde única, além do estabelecimento de parcerias na região metropolitana e integração de esforços para otimizar os recursos financeiros e administrativos.
Unidades de Vigilância em Zoonoses (UVZ)
A imagem que as pessoas têm do CCZ como órgão de recolhimento e sacrifício de animais está relacionada ao seu histórico, porém suas atribuições mudaram com o passar dos anos. A partir de 2014, com a Portaria MS 758/2014 16, esses órgãos passaram a ser denominados Unidades de Vigilância de Zoonoses (UVZs), com o objetivo de ser centros de inteligência em zoonoses e articuladores de ações intersetoriais, e não apenas órgãos operacionais e de controle. A Portaria Conjunta 01/2014 da Prefeitura de Curitiba foi um grande marco não apenas para a cidade, mas também para todo o país. Nela estão dispostas todas as ações que devem ser compartilhadas pelas secretarias municipais de saúde e de meio ambiente e as ações que são específicas de cada órgão 14. Enquanto a vigilância de zoonoses, por exemplo, é de atribuição exclusiva da Secretaria Municipal de Saúde, as denúncias de maus-tratos devem ser de responsabilidade somente da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Figuras 3 e 4).
As atribuições da Secretaria Municipal de Saúde se ampliaram historicamente com as novas demandas sociais e a nova abordagem da saúde pública, associadas à saúde animal e à saúde ambiental (saúde única). A divisão das atribuições com as respectivas secretarias municipais e estaduais do Meio Ambiente não reduziu necessariamente a capacidade do município, mas ampliou (em certos casos dobrou) o efetivo de profissionais que trabalham com a prerrogativa da saúde animal. Mesmo separados pelos ministérios e secretarias estaduais, somos unidos e colaboradores na esfera municipal.
Em resumo, sabendo-se que saúde animal corresponde à liberdade sanitária (principal das cinco liberdades que constituem o bem-estar animal), todo médico-veterinário que cuida da saúde animal (e pública) preserva ao menos uma (a principal) das liberdades do bem-estar animal. Portanto, somos todos sanitaristas, somos todos protetores, somos todos profissionais da saúde única.
Referências
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03-SOUZA, M. F. A. Controle de populações caninas: considerações técnicas e éticas. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 6, n. 8, p. 115-133, 2011.
04-PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Resumo executivo do projeto: rede de defesa e proteção animal da cidade de Curitiba. Curitiba, 2009. 28p. Disponível em <http://www.protecaoanimal.curitiba.pr.gov.br/Publicacoes/Resumo-plano-Municipal-Defesa-Protecao-Animal.pdf>.
05-BRASIL. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L9605.htm>.
06-MINISTÉRIO DA SAÚDE: FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE. Diretrizes para projetos físicos de unidades de controle de zoonoses e fatores biológicos de risco. Brasília: FUNASA, 2002. 43 p. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/fatores_bio_risco.pdf>.
07-MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria n. 1.138/2014 de 23 de maio de 2014. Brasil.
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10-GOMES, L. H. ; ALMEIDA, M. F. ; PARANHOS, N. T. ; GARCIA, R. C. ; NUNES, V. F. P. ; NETO, H. M. ; CARDOSO, S. M. S. Avaliação de riscos à saúde e intervenção local associadas ao convívio com cães e gatos, Jardim Paraná, Brasilândia, São Paulo, SP, 2003. Revista de Educação Continuada em Medicina Veterinária e Zootecnia do CRMV-SP, v. 6, n. 1/3, p. 83-94, 2003.
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