Os ratos e os cidadãos civilizados
O manejo populacional como substituição ao envenenamento
Os ratos são um problema na civilização humana muito antes da era cristã, desde o surgimento das primeiras aglomerações de pessoas em vilas e aldeias. A utilização de gatos foi o primeiro método utilizado para minimizar o impacto dos roedores, principalmente na agricultura. Os primeiros registros dessa prática datam do Egito antigo, 3.000 anos antes de Cristo, quando os gatos eram usados para controlar os roedores nos locais em que os cereais eram armazenados. Hoje sabemos que, embora os gatos possam ajudar no manejo dos roedores, eles devem ser utilizados com cautela, e não são um método eficaz de controle populacional.
As ratazanas (Rattus norvegicus, Berkenhout, 1769), espécie originária do leste da Ásia (norte da China e Mongólia), também chamados de ratos de esgoto (sewer rats), são encontradas nas cidades e também nas zonas rurais do mundo todo. Conhecidas por sua ca pa cidade de transmitir diversas doenças às pessoas, foram classificadas como vilãs históricas na disseminação de grandes epidemias como a peste negra: causada pela bactéria Yersinia pestis que é transmitida pelas pulgas dos ratos, ela matou milhões de pessoas em três pandemias diferentes entre os séculos 6 e 20, sendo ainda (surpreendentemente) endêmica em áreas do Nordeste brasileiro. Os ratos têm sido identificados historicamente como os principais reservatórios da leptospirose urbana, motivo de a desratização fazer parte das ações rotineiras das Unidades de Vigilância em Zoonoses.
O método mais comum de controle de roedores, principalmente nas cidades, são os rodenticidas ou raticidas, que causam a morte de ratos e camundongos por meio de ve enos à base de anticoagulantes antagonistas da vitamina K1, que provocam hemorragia interna lenta e dolorosa, com alto grau de sofrimento para os animais. Além disso, essa técnica é eficiente para eliminar uma quantidade pe que na dos animais de uma colônia, geralmente os ratos mais jovens; isso porque os serviços de controle de pragas, e mesmo as pessoas em suas residências, não levam em conta o comportamento desses animais, o que impede uma efi iência maior e um sofrimento menor para os ratos envolvidos.
Mas por que temos tantos ratos nas cidades? A resposta é simples e tem origem antropocêntrica. Ela decorre da produção e destinação incorreta dos resíduos orgânicos, que servem de fonte de alimento para os ratos e aumentam a capacidade de sobrevivência desses animais.
Os ratos e as zoonoses
Os ratos podem ser fonte de inúmeros patógenos, como Leptospira spp., Hantavirus, Rickettsia typhi (tifo murino) e Yersinia pestis (peste bubônica), responsáveis pela morte de uma grande quantidade de pessoas em todo o mundo. Dessas, apenas a Yersinia pestis causa doença no rato. Isso se deve à adaptação dos patógenos ao organismo dos ratos, que não resultam em enfermidade ou resposta imune funcional.
Ainda não se conhece o impacto real causado por mudanças externas impostas na dinâmica populacional de ratos, em relação à ecologia das doenças transmitidas por eles (como o uso de raticidas). Para outras doenças infecciosas estudadas em populações selvagens, o controle baseado na eliminação dos animais pode ter efeito contrário, com aumento da prevalência de uma doença devido à quebra na ecologia populacional, pois aumenta a transmissão da doença.
Conhecer o comportamento dos ratos
As ratazanas são animais que preferem a noite, tornando-se ativas ao entardecer, quando saem à procura de alimentos e de água. Alguns ratos tornam-se ativos durante o dia, quando as colônias crescem muito. Portanto, quando vemos um rato à procura de comida durante o dia, é um sinal de que as colônias estão com grande quantidade de animais. Em um dia, um rato pode se locomover, em média, de 30 a 50 metros, e não costuma se distanciar muito de sua casa para obter comida e água.
Eles costumam construir ninhos abaixo do solo usando uma diversidade de materiais. A gestação das fêmeas dura de 21 a 23 dias, e as ninhadas são de seis a doze filhotes por vez. Os filhotes crescem rapidamente e se tornam totalmente independentes com 3 a 4 semanas de vida, atingindo a maturidade sexual com 3 meses de idade. Em locais com clima tropical e subtropical, as atividades reprodutivas diminuem pouco nos meses de outono e inverno, diferentemente de lugares muito frios, quando se interrompem todas as atividades.
| O quê? | Como evitar |
| Alimento | Roedores se alimentam de restos orgânicos produzidos pelas pessoas e por ração de pets expostas. Portanto, armazenar o lixo corretamente e retirar os potes de comidas dos cães e gatos evita a presença de roedores. |
| Água | Todo ser vivo precisa de água para sobreviver. Os roedores utilizam qualquer fonte de água disponível. Suspender os potes de água e colocá-los sobre um apoio que não permita a entrada de roedores. |
| Acesso | Evitar o acesso de roedores através de bueiros e ratos tampados é a principal estratégia para impedir sua entrada em edifícios. |
| Abrigo | Roedores circulam pelo sistema de esgoto, mas fazem seus abrigos e tocas na terra, embaixo de entulho e de lixo. Manter os terrenos limpos dificulta a permanência desses animais. |
| Acasalamento | É o mais difícil de ser controlado pelas pessoas. Porém, reduzindo os demais “A’s”, diminui a disponibilidade de recursos e dificulta o crescimento da população de roedores. |
Como evitar ratos na cidade: a regra dos 5 As
Neofobia
Os ratos são animais inteligentes, que exploram e aprendem sobre seu ambiente, memorizando caminhos, obstáculos, comida e água, abrigos e outros elementos ao seu redor. Eles detectam e tendem a evitar tudo que é novo em seu ambiente conhecido, e esse comportamento recebe o nome de neofobia, considerado o maior obstáculo no controle de roedores. Saber utilizar esse comportamento a favor do controle de ratos é fundamental para se obter maior sucesso e menor sofrimento.
Para evitar a expressão desse comportamento, os animais devem se habituar com novos objetos e alimentos. No caso de armadilhas, mantê-las abertas até que os animais se acostumem com o objeto; e, no início, os alimentos utilizados como isca devem ser ofertados sem o raticida. Essa “ceva” utilizando alimento não tóxico aumenta o sucesso do controle de roedores, quando se utiliza o rodenticida de efeito agudo.
Como reconhecer a presença e calcular o número de roedores?
O sinal mais fácil de perceber é a presença de fezes espalhadas por onde eles passaram. Além disso, os ratos costumam usar os mesmos caminhos repetidamente, facilitando a visualização de sinais, bem como a ocorrência de tocas próximo a paredes, cercas ou arbustos. Em locais com poeira ou terra é possível ver rastros de suas pegadas ou da cauda. Dependendo do tipo de superfície, manchas de urina podem ser visualizadas, para quem tem treinamento. Outro sinal comum é encontrar marcas de gordura pelos caminhos frequentemente percorridos. Eles também deixam marcas nos locais e objetos que roem, incluindo paredes e portas, mantendo, desse modo, seus dentes incisivos emparelhados. A visualização de roedores durante o dia é um alerta para a infestação desses animais, pois eles têm hábitos preferencialmente noturnos.
Sendo seres sencientes, por que aceitamos a morte dolorosa dos ratos?
Todos os animais vertebrados são cientificamente reconhecidos como seres sencientes, incluindo os cães, gatos, cavalos e roedores. Apesar disso, por falta de empatia com a espécie e por ela estar associada a doenças, os ratos são tratados como pragas e eliminados de maneira não humanitária. Porém, diversas pessoas criam roedores como animais de estimação, reconhecem seu sofrimento frente às doenças, mas eliminam roedores sinantrópicos por meio de envenenamento. Se somos capazes de reconhecer esse sofrimento, porque continuamos a matá-los de modo tão cruel?
A medicina veterinária do coletivo procura procura encontrar, nesta abordagem das ações das secretarias municipais e estaduais de saúde e de meio ambiente, uma maneira equilibrada de fazer o manejo adequado dos roedores, minimizando ou evitando os sofrimentos desnecessários impostos a eles.
Raticidas e envenenamento de roedores
Os raticidas destinam-se a combater ratos, camundongos e outros roedores, em domicílios, embarcações, recintos e lugares de uso público. Eles contêm substâncias ativas, isoladas ou associadas, que, idealmente, não oferecem risco à vida ou à saúde do homem e dos animais úteis de sangue quente, quando aplicadas em conformidade com as recomendações contidas em sua apresentação. Essa é a definição da lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos essas drogas, em seu artigo 3, inciso VII, item b.
Os rodenticidas podem ser classificados em dois grupos: aqueles com ação anticoagulante e aqueles sem ação anticoagulante.
Os anticoagulantes (compostos cumarínicos) são os mais utilizados desde a sua descoberta na Segunda Guerra Mundial. Os ratos envenenados por esse método morrem por hemorragia interna, que resulta da incapacidade de coagular o sangue e de regular os danos aos capilares sanguíneos provocado pelo veneno. Se forem de ação lenta, minimizam o efeito da neofobia entre os animais da colônia, pois eles terão de ingerir a isca durante vários dias antes de morrer; mas isso provocará, consequentemente, um sofrimento prolongado. Se a dose for elevada em uma mesma isca, os efeitos do anticoagulante aparecem após 30 minutos. Os mais utilizados são compostos à base de brodifacoum e bromadiolone.
A utilização de iscas com anticoagulantes pode falhar por diversos motivos: resistência do roedor ao veneno utilizado, disponibilidade da isca por curto período, quantidade e reposição de iscas insuficientes, cobertura de área insuficiente. Os ratos podem ainda escolher outros alimentos, pode haver falta de palatabilidade da isca, e as iscas podem estar velhas e estragadas.
Com relação aos rodenticidas não anticoagulantes, o colecalciferol é o mais utilizado, provocando a morte dos roedores entre um a três dias após o uso. Seu mecanismo de ação envolve a absorção exagerada de cálcio, provocando falhas em diversos órgãos e, consequentemente, a morte do animal. Como atuam de forma crônica, os ratos se alimentam diversas vezes durante vários dias; esse processo não interfere no comportamento neofóbico dos roedores.
Segundo a resolução RDC nº 34, de 16 de agosto de 2010, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), são proibidos no Brasil a utilização de rodenticidas que contenham alfanaftiltiouréia (Antu), arsênico e seus sais, estricnina, fosfetos metálicos, fósforo branco, monofluoroacetato de sódio, monofluoroacetamida, sais de bário e sais de tálio.
Entre os compostos proibidos, ainda existe os carbamatos e organofosforados, conhecidos por “chumbinho”. Embora sejam agrotóxicos comercializados no Brasil de forma ilegal, são facilmente encontráveis. Esses compostos não são eficazes no controle de roedores, pois provocam uma morte aguda, exacerbando o comportamento neofóbico entre os demais animais da colônia. Além disso, são perigosos para a saúde humana e de outras espécies de animais com relatos de acidentes fatais com crianças e gatos.
Há relatos de que as carcaças dos animais mortos, servindo como alimentos de aves de rapina, podem causar a morte destas, além de as carcaças atuarem como contaminantes ambientais. Os resíduos gerados pela utilização e descarte dos raticidas apresentam alta toxicidade ambiental, inclusive com descrição nas informações técnicas dos produtos. A má utilização de raticidas compromete ainda a sobrevivência de outras espécies animais nativas, como roedores silvestres, aves e anfíbios.
Armadilhas
O controle de roedores utilizando armadilhas pode ser útil, desde que os manipuladores tenham habilidade. Essa técnica é recomendada para locais em que não se pode usar venenos, como em zoológicos, dentro do recinto dos animais (Figura 1).

É importante saber escolher os locais em que serão colocadas as armadilhas, de preferência pelo caminho usual dos roedores. Também se deve ter o cuidado de não desenvolver o comportamento neofóbico dos animais, como já mencionado anteriormente. Essa técnica só deve ser utilizada se o serviço de desratização contar com métodos adequados para promover a eutanasia dos ratos, de modo rápido e sem sofrimento.
A utilização de veneno deveria ser a última medida utilizada, quando todas as outras falharam. É importante educar a população para que mude os hábitos no enfrentamento do controle de roedores, pois, sem a modificação do habitat dos ratos, tornando os locais menos atraentes para sua sobrevivência, mesmo com a erradicação de uma colônia, não se evitará uma nova recolonização por outros ratos.
A interessante experiência do Templo dos Ratos Sagrados, na Índia
O templo é conhecido por abrigar aproximadamente 20.000 ratos pretos, considerados sagrados, pois os devotos de Karni Mata acreditam que os animais são reencarnações de seus ancestrais. Existe há seiscentos anos e fica na cidade de Deshnoke, no Rajastão (Figura 2).

Beber da água dos ratos e comer suas sobras de alimentos é considerado sinal de boa sorte para aqueles que visitam o templo. Se um dos ratos é morto acidentalmente, ele deve ser substituído por uma escultura de rato em prata ou ouro.
Alguns fatores, como excesso de alimentação doce, brigas entre os animais e a grande quantidade deles os torna propensos a contrair doenças, especialmente diabetes e problemas de estômago. Os ratos nunca foram pesquisados com relação a doenças; apesar disso, porém, não há relatos de pessoas adoecendo devido ao contato com os roedores.
Sobre o serviço de controle de roedores em Curitiba
O controle de roedores realizado pela Unidade de Vigilância de Zoonoses ocorre, prioritariamente, nas áreas de risco para transmissão da leptospirose. Para atuar no enfrentamento dessa zoonose, o município de Curitiba conta, desde 2008, com o elenco de 110 áreas de risco. Essas áreas, geralmente ocupações irregulares, apresentam outras características como: déficit de saneamento básico, enchentes e alagamentos frequentes e histórico de casos confirmados de leptospirose. Nesses casos, o trabalho desenvolvido envolve a avaliação ambiental do peridomicílio, na qual se procura identificar a presença de fezes, tocas, trilhas e/ou manchas de gordura que evidenciem a presença de roedores. Na etapa seguinte, promove-se a intervenção química com rodenticidas apropriados (bloco parafinado ou pó de contato), so mente quando se comprova, por meio da observação, a presença desses vestígios. Finaliza-se o trabalho orientando o cidadão no que diz respeito ao manejo do ambiente, e lhe transmitindo informações sobre a prevenção da leptospirose.
Outro campo de atuação, realizado de modo permanente pelo município, é o atendimento à demanda dos munícipes por meio da central 156, que solicitam o controle de roedores em via pública (bueiros). Essa demanda pode ser gerada por cidadãos de todos os bairros da cidade; o trabalho consiste na intervenção química, utilizando-se apenas o raticida tipo bloco parafinado, por ser constituído de material mais resistente à umidade. Nesses casos, o contato direto com o cidadão também se mostra importante, uma vez que a orientação no local pode promover mudanças no ambiente, evitando-se, assim, revisitas que impactam negativamente na capacidade de atendimento à população e tornam o serviço bastante oneroso.
Existe, ainda, uma demanda significativa proveniente das diversas secretarias da prefeitura de Curitiba, especialmente a Secretaria da Saúde e da Educação, que solicitam o controle de roedores para os seus diferentes equipamentos. Nesses casos, tem-se procurado redefinir o papel da Unidade de Vigilância de Zoonoses (UVZ) superando o paradigma da “desratização”, no qual se entende o controle de roedores apenas por meio da aplicação de produtos químicos, desvinculada de outras ações que modifiquem a estrutura do ambiente, que favorece a presença de roedores. Ao compreender que a intervenção química, usa da como estratégia isolada, tem efeito apenas paliativo, a UVZ passa a atuar, em todas as suas atividades, na perspectiva da avaliação de risco para transmissão da leptospirose. Dessa maneira, passa a exercer o papel de uma unida de de referência no município, promovendo apoio técnico na definição de estratégias mais resolutivas, de longo prazo.
Referências sugeridas
1-ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/anvisa/home>. Acesso em 4 de março de 2016.
2-ICWDM. The Internet Center for Wildlife Damage Manegement. 2015. Disponível em: <http://icwdm.org>. Acesso em 4 de março de 2016.
3-UC IPM, Statewide Integrated Pest Manegement Program. 2014. Disponível em: <http://www.ipm.ucdavis.edu/PMG/PESTNOTES/pn74106.html>. Acesso em 4 de março de 2016.
4-CLAPPERTON, B. K. A review of the current knowledge of rodent behaviour in relation to control devices. Science for Conservation, v. 263, p. 1-55, 2006. ISSN: 1173-2946.
5-BRASIL. Manual de controle de roedores. Brasília: Funasa, 2002. 132 p. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_roedores1.pdf>. Acesso em 4 de março de 2016.




