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Corte de orelha para identificação de gatos de vida livre: mutilação ou procedimento necessário?

Créditos: czechphotos Créditos: czechphotos

Os gatos errantes podem ser abandonados ou ter um tutor. Os abandonados podem formar colônias em ambientes onde há recursos de abrigo, água e alimento próximos. O comportamento deles em relação à presença do ser humano e suas interações vai depender, entre outros fatores, das suas experiências anteriores e da sua socialização, influenciando as estratégias para o manejo dessas populações.

Os gatos ferais são aqueles que nunca tiveram contato com humanos ou cujo contato foi diminuindo ao longo do tempo, apresentando medo das pessoas e sobrevivendo por conta própria. Para fins desse artigo, entende-se por “gatos de vida livre” aqueles que não possuem um tutor ou lar, que vivem livremente, dependendo ou não dos recursos oferecidos por humanos para a sua sobrevivência (Figura 1).

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Figura 1 – Composição da população total de gatos

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O manejo populacional humanitário de gatos envolve a captura, esterilização cirúrgica e devolução (CED) para o mesmo local, sendo fundamental a identificação dos animais que já foram castrados.

Existem diversos métodos disponíveis para identificação de animais, como microchipagem, tatuagens, colares e plaquetas, etc. No caso de felinos que vivem em colônias que estão sendo manejadas por meio da estratégia CED, o principal objetivo é identificar os animais que já foram capturados e esterilizados e evitar tanto o estresse e o sofrimento animal, como gastos desnecessários com uma recaptura e anestesia. Para tanto, nesses casos o método de identificação deve seguir os seguintes pré-requisitos: ser permanente, ser visível à distância, ser de fácil execução e obviamente não causar nenhum dano ou injúria ao animal.

Infelizmente, nenhum dos métodos de identificação mencionados acima é indicado nos casos de colônias de gatos que estão sendo controladas por meio de programas CED. As tatuagens não podem ser vistas à distância e, em se tratando de gatos ferais, muitas vezes a aproximação antes da captura se torna impossível. Os colares com plaquetas de identificação, além de não serem permanentes, pois os animais podem perdê-los, são perigosos para animais de vida livre (por exemplo, animais que crescem ou engordam podem ser machucados pela coleira; animais podem ficar presos a objetos ou galhos de árvores, trazendo sérios riscos à sua vida e saúde).

No passado, alguns projetos chegaram a utilizar “brincos plásticos” para identificação dos animais, mas estes se mostraram ineficazes a médio e longo prazo, quase sempre caíam ou causaram infecções locais. Os microchips, apesar de serem fundamentais para programas de manejo de populações caninas e felinas em áreas urbanas, seu uso isolado não cumpre a função primordial de diferenciar à distância os animais que já foram capturados e castrados daqueles que ainda não o foram nos programas de CED. Nesses casos, a microchipagem deve sempre ser acompanhada de um método de identificação externo.

A remoção da ponta de uma das orelhas é o padrão global aceito para marcar ou identificar um gato de comunidade de vida livre esterilizado, sendo recomendado tanto pela American Veterinary Medical Association – http://goo.gl/iqJfwm, como pela British Veterinary Association – http://goo.gl/k6Zsiq.

Também organizações de defesa animal, internacionais, que trabalham com o manejo de gatos em vida livre recomendam a remoção da ponta da orelha esquerda, e esse padrão é amplamente utilizado. Na Universidade Federal do Paraná, a ponta da orelha direita tem sido removida para a identificação de fêmeas e a esquerda para machos (Figura 2).

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Figura 2 – Remoção da ponta da orelha, padrão reconhecido internacionalmente para identificação de gatos de vida livre que vivem em comunidades

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Segundo a resolução nº 1.027 de 10 de maio de 2013 do Conselho Federal de Medicina Veterinária, são proibidos os procedimentos de caudectomia, conchectomia, cordectomia e onicectomia em animais com fins estritamente estéticos. Os profissionais que optarem mesmo assim por realizar esses procedimentos visando apenas opções humanas de “embelezamento” do animal podem responder a processos ético-profissionais nos seus respectivos conselhos. A resolução discute ainda que em casos de necessidade de saúde ou que mostrem objetivos não meramente estéticos, os mesmos podem ser realizados. Portanto, o corte de orelha com fim de identificação é utilizado como maneira de controle populacional e está inserido em um programa de saúde coletiva, sendo assim não possui apenas cunho estético.

 

Procedimento

O procedimento de corte da orelha é realizado com o animal sob efeito de anestesia geral, durante ou ao final do procedimento de castração, antes que o animal se recupere da anestesia. A ponta distal da orelha pode ser removida com o uso de dissecação precisa ou, se disponível, com eletrocautério ou laser. A maioria dos procedimentos é realizada com uma pinça reta e uma tesoura reta; esta última é preferível a uma lâmina de bisturi, visto que ajuda na realização da hemostasia por sua ação de esmagamento (Figura 3).­

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Figura 3 – O procedimento de corte da orelha é realizado com o animal sob efeito de anestesia geral, durante ou ao final do procedimento de castração

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Os materiais cirúrgicos devem ser retos para segurar que a orelha fique em linha reta. Isso tem grande importância para assegurar o efeito visual e facilitar a identificação do animal a distância, pois instrumentais curvos podem dar a impressão de que a orelha não está cortada se vista a longa distância. A quantidade a ser removida dependerá do tamanho do animal e em geral é proporcional a um quarto da porção distal do pavilhão auricular, com aproximadamente 0,5 a 1 cm. Após o procedimento a pinça é mantida no local até a recuperação anestésica a fim de auxiliar na hemostasia.

Não é recomendada e nem necessária síntese da incisão, visto que, nessa região do pavilhão auricular há apenas pequenas ramificações da artéria e veia auricular, e delgada camada de cartilagem e pele, não trazendo risco algum ao paciente.

Existem alguns projetos de CED que usam outras formas de corte como forma de marcação, como a marcação meia-lua na aba interna ou em forma de um pique triangular na aba exterior. Independente da forma padrão utilizada no programa é extremamente recomendável que as orelhas sejam cortadas e não chanfradas, porque essa marcação pode facilmente ser confundida com lesões de lutas, especialmente em machos, ou com outra lesão acidental. Além disso, estas são de difícil identificação à distância o que dificulta o manejo da colônia (Figura 4).

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Figura 4 – A identificação visual dos animais é essencial para o desenvolvimento do manejo das colônias nos projetos de CED. Créditos: World Protection Animal

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A marcação padronizada e aceita internacionalmente como identificação de gatos ferais que estão esterilizados é a marcação com o corte da ponta da orelha esquerda de aproximadamente 1 cm nos gatos adultos e 0,5 cm nos gatos mais jovens, como na figura 2.

Principais vantagens do método:

• Seguro e permanente.

• Pode ser detectado à distância, sem necessidade de um equipamento especializado. 

• Não oneroso, não requer tecnologia ou uso de dispositivo.

• Não requer treinamento específico por parte do cirurgião (método de fácil execução e baixo risco cirúrgico) 

• Método humanitário e sustentável, pois previne capturas e cirurgias duplicadas e desnecessárias em um mesmo animal, principalmente nas fêmeas.

 

Questões de bem-estar animal

Algumas pessoas ainda enxergam este método já consagrado de identificação como uma forma de mutilação. Muitos acreditam que os animais que apresentam este tipo de marcação podem apresentar maiores dificuldades de encontrar um adotante se forem colocados em programas de adoção. Conversando com organizações e profissionais que trabalham com CED há muitos anos, tanto no exterior quanto no Brasil, as opiniões dessas pessoas que lidam diariamente com programas de CED corroboram o que as associações médico-veterinárias defendem, ou seja, o corte de orelha em gatos não causa nenhum sofrimento, muito pelo contrário, evita o sofrimento desnecessário de se capturar um gato que já foi capturado e esterilizado no passado e não dificulta o processo de adoção.

Testemunho: “Apesar da resistência de parte da sociedade e até de pessoas ligadas à Proteção Animal, os agentes de CED devem continuar praticando a marcação de orelha (ear tipping) em gatos que são devolvidos para as colônias após captura e esterilização. Essa é a maneira mais eficaz encontrada para identificarmos e separarmos, durante as operações, felinos castrados de inteiros. Sem a marcação, os trabalhos de CED seriam muito mais demorados e dispendiosos.

E é importante também adotar a convenção internacional do corte reto na orelha esquerda. O lado esquerdo por ser convenção, e o corte reto por ser de fácil visualização e atingir área pouco vascularizada, proporcionando cicatrização muito rápida. Além disso, o corte reto protege o gato de dilacerações em brigas”, Eduardo Pedroso, agente de CED há mais de 5 anos, ONG Bicho Brother – http://www.bichobrother.org.br.

 

Referências

1-GRIFFIN, B. Gatos de comunidade, cuidados e controle. In: LITTLE, S. E. O gato: medicina interna. Rio de Janeiro: Roca, 2016. 1. ed. p. 1238-1258.

2-KORTIS, B. Neighborhood cats TNR handbook: The guide to trap-neuter-return for the feral cat caretaker. 2004, 2. ed. 117-119p.

3-PELLIZZARO, M. ; CUNHA, G. R. ; BIONDO, A.W. Gatos ferais: quem são, como surgiram e qual a sua importância. Clínica Veterinária, ano XIX, n. 110, p. 40-41p, 2014.

4-Resolução n.1.207 do CFMV, de 10 de maio de 2013. Disponível em: http://www.crmvgo.org.br/legislacao/5_CLINICA/resolucao_1027(1).pdf

5-Alley cat allies. Protocols: eartipping. Disponível em: http://4fi8v2446i0sw2rpq2a3fg51-wpengine.netdna-ssl.com/wpcontent/uploads/2015/02/EartippingFactsheet.pdf

6-ICAM. International Companion Animal Management Coalition. Humane cat population management guidance. 21p. Disponível em: http://www.ifaw.org/sites/default/files/ICAMHumane%20cat%20population.pdf

7-AVMA. Veterinary Medical Association. Free-roming and feral cats. https://www.avma.org/KB/Policies/Pages/Free-roaming-Abandoned-and-Feral-Cats.aspx

8-BVA. British Veterinary Association. Guidance cat neutering. https://www.bva.co.uk/uploadedFiles/Content/Membership_and_benefits/Students/Guidance_notes_-_cat_neutering.pdf