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Direito médico-veterinário

Ato médico-veterinário

Legislação e ajustes necessários

Matéria escrita por:

Antônio Felipe Paulino de Figueiredo Wouk

28 de jul de 2022

Desde da regulamentação do exercício profissional em 1968, a legislação a respeito da atividade do médicoveterinário vem sendo aperfeiçoada e ajustada às mudanças das demandas sociais e no status dos animais surgidas ao longo do tempo. A conciliação entre as práticas e a legislação requer constante atenção. créditos: SizeSquares Desde da regulamentação do exercício profissional em 1968, a legislação a respeito da atividade do médicoveterinário vem sendo aperfeiçoada e ajustada às mudanças das demandas sociais e no status dos animais surgidas ao longo do tempo. A conciliação entre as práticas e a legislação requer constante atenção. créditos: SizeSquares

No Brasil, em termos jurídicos, o ato médico surgiu em medicina com a Lei n. 12.842 de 2013. Deveu-se a uma demanda da classe médica por maior clareza da legislação quanto às reponsabilidades profissionais na realização dos procedimentos clínicos em seres humanos.

Na medicina veterinária, a Lei n. 5.517 de 1968 que regulamenta o exercício profissional, especialmente nos seus artigos 5o e 6o, ao contrário do que ocorreu com a medicina, estabeleceu claramente o que é da competência privativa do médico-veterinário. Para exemplificar, disciplinou inclusive que o estudo e a aplicação de medidas de saúde pública no tocante às doenças de animais transmissíveis ao homem, as zoonoses, são atribuições do médico-veterinário, que veio a ser reconhecido um profissional de saúde pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) apenas em 1998. Cabe salientar que nesta lei maior da nossa profissão médico-veterinária não existe o emprego do termo “ato médicoveterinário”.

A legislação sobre o exercício profissional da medicina veterinária veio sendo aperfeiçoada ao longo destes 54 anos, acompanhando as mudanças nas demandas sociais e no status dos animais, primordialmente por meio de Resoluções do Sistema CFMV/CRMVs. Destas, merecem destaque as Resoluções:

– CFMV n. 877, de 15 de fevereiro de 2008, que dispõe sobre os procedimentos cirúrgicos em animais de produção, animais silvestres e cirurgias mutilantes em pequenos animais;

– CFMV n. 1.138, de 16 de dezembro de 2016, que aprova o Código de Ética do Médico-Veterinário; e

– CFMV n. 1.236, de 26 de outubro de 2018, que define e caracteriza crueldade, abuso e maus-tratos contra animais.

Em relação ao bem-estar dos animais, precederam-nas a Resolução CFMV n. 1.236 e leis estaduais (vários estados brasileiros as implementaram) de proteção aos animais. Cito a do Paraná, por ter sido uma das primeiras, a Lei Estadual n. 14.037, de março de 2003, que criou o Código Estadual de Proteção aos Animais no Paraná.

Atualmente tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que ambicionam criar o Estatuto dos Animais e para tanto modificar o Código Civil, alterando o status dos animais para seres sencientes. Uma primeira reflexão é a da grande evolução da percepção por parte da sociedade das relações com os animais, com novas exigências de bem-estar e saúde animal, saúde pública e proteção ao meio ambiente. Em relação à produção animal, emerge o conceito de produção ética.

O Ministério da Agricultura é o outro organismo que legisla complementarmente questões afeitas ao exercício da medicina veterinária, particularmente as relativas aos produtos veterinários, por meio de decretos-leis, decretos, instruções normativas, atos, notas técnicas, memorandos e ofícios circulares. A título de exemplo, evidenciando como a legislação acompanha as demandas sociais, uma nota técnica de julho de 2021 do Ministério da Agricultura trata de estruturas de uso veterinário na produção de vacinas poderem ser utilizadas para a produção emergencial de vacinas contra a Covid-19.

Na legislação médico-veterinária brasileira, o termo “ato médico-veterinário” surge pela primeira vez em 4 de janeiro de 2019, na Resolução n. 1 do CRMV-PR, que normatiza procedimentos de contracepção de cães e gatos em ações pontuais (mutirões) e/ou programas de esterilização cirúrgica com a finalidade de controle populacional no estado do Paraná. Essa Resolução assim define o ato médico-veterinário: “Ato médico-veterinário (sinônimo de prática clínica veterinária): todas as intervenções materiais ou intelectuais que têm por objetivo diagnosticar, tratar ou prevenir doenças mentais ou físicas, lesões, dores ou defeitos em um animal, ou determinar as condições de saúde e bem-estar de um animal ou grupo de animais, assim como determinar o seu estado fisiológico, incluindo a prescrição de medicamentos veterinários. Também é considerado ato médicoveterinário qualquer intervenção que cause dor ou que tenha o potencial de causar dor aos animais; todas as intervenções invasivas em animais; qualquer certificação relacionada aos atos anteriormente citados. Todos os atos médicos-veterinários são considerados privativos do médico-veterinário”. Esta definição foi adaptada da publicada em 7 de junho de 2008 pela Federação Europeia de Veterinários (FVE).

Foram publicadas, posteriormente, a Resolução n. 367 do CRMV-MG, de 26 de agosto de 2019, e a Resolução n. 60 do CRMV-RJ, de 11 de janeiro de 2021, ambas tratando igualmente de controle populacional e definindo o ato médico-veterinário tal qual a Resolução n.1 do CRMV-PR, de 2019, anteriormente citada.

Nas três ocasiões, até este momento, em que o termo “ato médico-veterinário” foi empregado, isso ocorreu no âmbito de resoluções que disciplinam a realização de atos cirúrgicos que não têm como objetivo o tratamento de uma doença cirúrgica, mas sim a realização de uma intervenção cirúrgica não terapêutica, uma intervenção da conveniência do ser humano, a contracepção animal em larga escala e um controle populacional com justificativa da promoção da saúde única e do bem-estar animal.

Ao tomarmos o exemplo do ato médico em medicina humana, que em sua finalidade se define pelo diagnóstico, tratamento e prevenção de doenças, percebe-se que, no caso do ato médico-veterinário, estão envolvidas práticas que não têm objetivo terapêutico ou de prevenção de doenças (descornas cirúrgicas, castrações, etc.). Por outro lado, se considerarmos as intervenções cirúrgicas de ligadura das trompas e vasectomia em seres humanos, procedimentos de esterilização decididos pelo indivíduo segundo sua conveniência, também estaremos diante de um ato cirúrgico não terapêutico.

Como estão à mercê das decisões dos responsáveis por eles, as leis visam proteger os animais, seres em essência sem defesa. Com relação aos atos cirúrgicos, a Resolução CFMV n. 877 estabelece in verbis: “Artigo 7o: Ficam proibidas as cirurgias consideradas desnecessárias ou que possam impedir a capacidade de expressão do comportamento natural da espécie, sendo permitidas apenas as cirurgias que atendam às indicações clínicas. Parágrafo único: São considerados procedimentos proibidos na prática médicoveterinária: caudectomia, conchectomia e cordectomia em cães, e onicectomia”.

A ovário-histerectomia com finalidade de esterilização não é uma indicação clínica, e a supressão hormonal elimina o comportamento natural produzido pela libido.

A Resolução CFMV n. 1.236, diz, em seu Artigo 5°: “Consideram-se maus-tratos” – e, no inciso XIX desse artigo – “mutilar animais, exceto quando houver indicação clínico-cirúrgica veterinária ou zootécnica”. Mais uma vez, a esterilização cirúrgica não é uma indicação clínica e muito menos zootécnica.

Cabe salientar que a definição de ato médico-veterinário constante das Resoluções Regionais do Paraná, Minas Gerais e Rio de Janeiro traz pela primeira vez o conceito de prevenção e tratamento de doenças mentais dos animais. Por outro lado, ao prever a prescrição de medicamentos veterinários apenas, exclui por lei a possibilidade de o médico-veterinário preceituar medicamentos da farmacopeia humana (Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância em Saúde – Portaria n. 344, de 12 de maio de 1998, e Resolução RDC Anvisa n° 659, de 30 de março de 2022).

É possível perceber que existe um risco de imprecisões e incompletudes ao legislar de maneira segmentada.

Retornando ao conceito de ato médicoveterinário, é de fundamental importância considerar dois aspectos: sua natureza e sua finalidade. O entendimento equivocado dessas noções leva a grandes mal-entendidos. Daí a necessidade de um novo exame da legislação, a fim de conciliar certas práticas com as normas jurídicas, segundo o princípio de base da competência técnica do autor do ato médico-veterinário. A este princípio de base agregam-se as limitações impostas pelos princípios de bem-estar animal e a perfeita apropriação dos conceitos de saúde única.

 

Referências sugeridas

1-FEDERATION OF VETERINARIANS OF EUROPE. European Veterinary Code of Conduct. FVE, 2019. 24 p. Disponível em: <https://fve.org/cms/wp-content/uploads/FVE_Code_of_Conduct_2019_R1_WEB.pdf>. Acesso em 31 de maio de 2022.

2-AMERICAN VETERINARY MEDICAL ASSOCIATION. 2019 Model Veterinary Practice Act. AVMA, 2019. 54 p. Disponível em: <https://www.avma.org/sites/default/files/2021-01/model-veterinary-practice-act.pdf>. Acesso em 31 de maio de 2022.

3-TIMM, S. ; HARTUNG, J. ; MAIORKA, P. . Compendium Animalis – coletânea de leis e normas de proteção animal no Brasil. 1. ed. 2020. 953 p. ISBN: 978-65-00-11764-6.

4-TIMM, S. ; HARTUNG, J. ; MAIORKA, P. Compendium Animalis – anexos. 1. ed. 2021. ISBN: 978-65-00-33077-9.

 
 
 
 



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