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Créditos: Thays Garreto Rodrigues dos Santos Créditos: Thays Garreto Rodrigues dos Santos

Spinal cord trauma by air gun projectiles in five cats

Traumatismo espinal por proyectiles por armas de aire comprimido en cinco felinos

 

Clínica Veterinária, Ano XXIII, n. 133, p. 64-84, 2018

DOI: 10.46958/rcv.2018.XXIII.n.133.p.64-84

 

Resumo: O trauma medular induzido por projéteis de armas de ar comprimido é considerado incomum em animais domésticos, particularmente em gatos. Desses, os que apresentam comportamento de fuga do domicílio e os que vagueiam livremente sem supervisão correm maior risco de receber ferimentos por disparo de armas. Apesar de seu tamanho pequeno, velocidade moderada e mau design aerodinâmico, os projéteis lançados por armas de ar comprimido (chumbinho) podem causar ferimentos graves. O tratamento e o prognóstico de animais que apresentam lesões por disparo de armas podem variar consideravelmente, dependendo da localização segmentar das lesões e da extensão dos danos. Objetivou-se descrever os achados neurológicos, radiográficos e cirúrgicos de cinco felinos acometidos por trauma vertebromedular provocado por projétil balístico em virtude da incomum ocorrência desse acometimento nessa espécie.

Unitermos: sistema nervoso, traumatismos da medula espinhal, ferimentos por arma de fogo, medula espinhal, gatos

 

Abstract: Spinal cord trauma induced by ballistic projectiles is considered uncommon in domestic animals, particularly cats. Outdoor, and indoor-outdoor cats are at greater risk of receiving gunshot wounds. Despite their small size, moderate speed and poor aerodynamic design, projectiles from compressed air guns (pellet guns) can cause severe injury. Treatment and prognosis of animals presented with gun-related injuries can vary considerably, depending on the affected spinal segment location of the lesions, and extent of tissue damage. Due to the unusual occurrence of this type of trauma in feline patients, the goal of this report is to describe the neurologic, radiographic, and surgical findings in five cats with spinal injury secondary to air gun projectiles.

Keywords: central nervous system, spinal cord injuries, gunshot wounds, spinal cord, cats

 

Resumen: El trauma medular por balas de aire comprimido es poco frecuente en animales domésticos, especialmente en gatos. Estos animales, en especial aquellos que se escapan de su domicilio y los que deambulan libremente sin supervisión de su dueño, corren más riesgos de sufrir heridas por el disparo de armas. A pesar de que los balines de aire comprimido tienen un tamaño pequeño, una velocidad media y malo diseño aerodinámico, este tipo de proyectil puede provocar heridas graves. El tratamiento y el pronóstico de los animales que presentan lesiones provocadas por este tipo de proyectiles puede variar de forma considerable, dependiendo de la localización de las lesión y de la extensión de los daños provocados. El objetivo del presente trabajo fue describir los síntomas neurológicos, las alteraciones radiográficas y los resultados de la cirugía de cinco felinos que fueron diagnosticados con trauma vertebro-medular provocado por balines de aire comprimido, dada la baja prevalencia de este tipo de eventos en gatos.

Palabras clave: sistema nervioso, traumatismos de la médula espinal, heridas por armas de aire comprimido, médula espinal, gatos

 

Introdução

As lesões traumáticas da coluna vertebral correspondem a aproximadamente 13% dos casos de afecções neurológicas em felinos 1. Em comparação com outras causas de trauma, como acidentes automobilísticos e quedas, os ferimentos provocados por arma representam um pequeno mas potencialmente devastador subconjunto de lesões traumáticas em pacientes veterinários 2-4. O número de pacientes com lesões induzidas por disparos de armas varia entre os estudos, e representa de 1,6% a 4,5% dos casos de trauma 3-6.

O ferimento induzido por projéteis na medula espinhal é considerado incomum em animais domésticos, particularmente em felinos 7, sendo mais frequente em cães do que em gatos 3,8,9. Os felinos que apresentam comportamento de fuga do domicílio e os que vagueiam livremente sem supervisão correm maior risco de receber ferimentos por disparos de armas 7,8,10-12.

Em medicina veterinária, a casuística de traumatismos provocados por projéteis balísticos varia com a localização geográfica. Os hospitais veterinários localizados em grandes cidades ou em áreas rurais apresentam maior incidência do que aqueles de cidades pequenas. O tipo de arma usada também varia em algum grau de acordo com a localização. As armas de mão são mais prevalentes em áreas metropolitanas, enquanto os rifles e espingardas são mais comuns em áreas rurais 8. As feridas provocadas por armas podem ser associadas a atividades criminosas, acidentais, de autodefesa, ou podem simplesmente representar um ato malicioso 13.

As armas pneumáticas dependem de ar comprimido em vez de pólvora para aumentar a velocidade do projétil. Os projéteis de chumbo são tipicamente moldados como uma ampulheta. Embora tenham uma massa e uma velocidade relativamente pequena em comparação com os projéteis convencionais, eles são capazes de ferir gravemente ou de matar animais menores, especialmente a curta distância 13.

Apesar de seu tamanho pequeno, velocidade moderada e mau design aerodinâmico, os projéteis lançados por armas de ar comprimido podem causar ferimentos graves 10. Os sinais clínicos associados à lesão traumática da medula espinhal variam, dependendo da gravidade e da localização 2-4. Em um estudo que incluiu um total de 122 casos, apenas 3,2% deles envolviam trauma à coluna vertebral, enquanto 42,6% se referiam a lesões nos membros, 26,2% no tórax, 11,4% no abdômen e na cabeça, e 4,9% no pescoço 9.

Em pacientes com traumatismo provocado por projéteis, a radiografia e a tomografia computadorizada (TC) são utilizadas para avaliar a gravidade das lesões, bem como para determinar se a estabilização da fratura ou a descompressão medular são indicadas 14-16. As radiografias devem incluir ao menos duas projeções para determinar a profundidade de penetração do projétil 10. Atualmente, a TC é considerada padrão-ouro para a obtenção de imagens da coluna vertebral de vítimas de acidentes com armas 17.

O tratamento e o prognóstico de animais que apresentam feridas provocadas por disparos de armas podem variar consideravelmente, dependendo da localização segmentar das lesões e da extensão dos danos 7. O conhecimento da arma pode ajudar o médico veterinário na determinação do possível dano tecidual e do manejo cirúrgico apropriado das lesões 10. A gravidade da lesão tecidual varia de acordo com as características do projétil, a energia cinética absorvida no impacto e os tecidos acometidos. Essas variáveis devem ser consideradas na avaliação das lesões de um paciente e na determinação do tratamento apropriado 13.

Objetivou-se descrever os achados neurológicos e radiográficos, o tratamento cirúrgico e os resultados pós-operatórios de cinco felinos acometidos por trauma vertebromedular provocado por projétil de arma de ar comprimido, em um período de aproximadamente oito anos (2009 a 2017), em virtude da incomum ocorrência desse tipo de lesão em pacientes felinos.

 

Descrição dos casos

Caso 1

Um paciente felino sem raça definida (SRD), macho, não castrado, adulto jovem, foi atendido com histórico de ter sido achado na rua havia três dias apresentando ferida perfurocontusa na região lombar lateral esquerda, no nível da segunda vértebra lombar, e síndrome toracolombar grau II.

No exame físico, não apresentava alterações clínicas importantes, e os exames laboratoriais encontravam-se dentro dos parâmetros para a espécie e a idade.

No exame neurológico, apresentava estado mental alerta e ausência de alterações na avaliação dos nervos cranianos. Na avaliação da marcha, apresentava paraparesia deambulatorial assimétrica mais grave no membro pélvico esquerdo (MPE). No membro pélvico direito (MPD) apresentava diminuição das reações posturais e da propriocepção. No MPE, as reações posturais e a propriocepção estavam ausentes. Os reflexos espinhais encontravam-se normais nos quatro membros, com presença de reflexo extensor cruzado nos membros pélvicos (MPS) (Figura 1).­

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Figura 1 – Vídeo da avaliação neurológica durante primeiro atendimento do animal 1 – http://youtu.be/Uk2MJA3wITI. Créditos: Bruno Martins Araújo­­

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Com base nos achados dos exames clínico e neurológico, suspeitou-se de traumatismo vertebromedular toracolombar, solicitando-se exame radiográfico da região. Nele, observou-se uma estrutura radiopaca sugestiva de projétil situado externamente ao pedículo vertebral de L2, do lado esquerdo, causando discreto afundamento do pedículo em direção ao canal vertebral (Figura 2).

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Figura 2 – Imagens radiográficas da coluna toracolombar do animal 1, nas projeções lateral (A) e ventrodorsal (B), demonstrando presença de projétil situado externamente ao pedículo vertebral de L2 (seta), do lado esquerdo (E), causando discreto afundamento do pedículo em direção ao canal vertebral. Créditos: Bruno Martins Araújo

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Diante da presença do projétil e da gravidade do dano neurológico ocasionado por ele, optou-se pela realização de hemilaminectomia entre as vértebras L1-L2, objetivando remoção do projétil e dos fragmentos ósseos que se projetavam para o canal vertebral e descompressão medular, cinco dias após o diagnóstico inicial (Figura 3).

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Figura 3 – Imagens do procedimento cirúrgico do animal 1 para remoção do projétil e descompressão me dular. A) Posicionamento em decúbito esternal, com visualização de ferida na região lombar esquerda (seta vermelha) e flacidez da musculatura do flanco esquerdo caudal ao orifício de entrada do projétil (seta amarela). B) Visualização do projétil após abordagem dorsolateral à coluna toracolombar. C) Momento da remoção do projétil do pedículo de L2. D) Presença de fratura do pedículo esquerdo de L2 (seta amarela), com penetração dos fragmentos ósseos para o interior do canal vertebral visualizada após remoção do projétil. E) Hemilaminectomia entre L1-L2 para remoção dos fragmentos ósseos da fratura pedicular e descompressão medular, possibilitando visualização de integridade medular (seta). F) Projétil após a remoção cirúrgica. Créditos: Bruno Martins Araújo

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Para o procedimento cirúrgico, o animal foi posicionado em decúbito esternal, e realizou-se a abordagem dorsolateral esquerda à coluna toracolombar. Após exposição vertebral, identificou-se o projétil, que se encontrava fixado ao pedículo vertebral e foi removido com auxílio de pinça oftálmica, o que permitiu observar a fratura do pedículo esquerdo de L2. Para a descompressão medular, realizou-se uma hemilaminectomia esquerda entre as vértebras L1-L2, permitindo a remoção dos fragmentos ósseos que se projetavam no interior do canal vertebral. Após o procedimento descompressivo, pôde-se observar a integridade macroscópica da medula espinhal, e após a lavagem do sítio cirúrgico, realizou-se o fechamento da ferida cirúrgica. 

No pós-operatório, o animal foi medicado com cefalexina a (30mg/kg, via oral, três vezes ao dia, por dez dias), cetoprofeno b (1 mg/kg, via oral, uma vez ao dia por três dias), cloridrato de tramadol c (4 mg/kg, via oral, três vezes ao dia, por sete dias) e cloridrato de ranitidina d (2 mg/kg, duas vezes ao dia, por dez dias).

Três dias após o procedimento cirúrgico, observou-se melhora significativa da locomoção. O animal já deambulava sem evidências de paresia no MPE e apresentava continência urinária (Figura 4).

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Figura 4 – Vídeo do animal 1 três dias após o procedimento cirúrgico, sem evidências de paresia no MPE – http://youtu.be/7wc_qprV6F4. Créditos: Bruno Martins Araújo

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Quinze dias após o procedimento cirúrgico, foi realizada a remoção dos pontos, não sendo observadas complicações relacionadas com a cirurgia. Nesse momento, durante a avaliação neurológica, o animal apresentou deambulação normal (Figura 5).

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Figura 5 – Vídeo do animal 1 quinze dias após o procedimento cirúrgico, com deambulação normal – http://youtu.be/y97RuHFq74M. Créditos: Bruno Martins Araújo

 

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Caso 2

Foi levado a consulta um felino SRD, adulto jovem, não castrado, cinco dias após ser encontrado na rua com ferida perfurocontusa infectada na região lombar e síndrome toracolombar.

No exame físico, o animal não apresentava outras alterações clínicas importantes, e os exames laboratoriais encontravam-se dentro dos parâmetros para a espécie e a idade.

No exame neurológico, observou-se estado mental e dos nervos cranianos sem alterações. Na avaliação da marcha, apresentava paraplegia, assim como ausência de reações posturais e da propriocepção nos MPS. Os reflexos espinhais apresentavam-se normais nos quatro membros. O tônus muscular encontrava-se normal, e o reflexo cutâneo do tronco mostrava-se ausente caudalmente a L4. O animal apresentava retenção urinária, hiperpatia no nível de L2 e ausência de nocicepção nos MPS e na cauda (Figura 6).

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Figura 6 – Vídeo da avaliação neurológica durante primeiro atendimento ao animal 2 – http://youtu.be/WcHeI-_32wo. Créditos: Bruno Martins Araújo

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Diante do histórico e dos achados do exame neurológico, suspeitou-se de trauma medular grave na região toracolombar, sendo solicitado exame radiográfico da coluna, no qual se observou a presença de duas estruturas radiopacas compatíveis com projéteis situados externamente ao pedículo vertebral de L2 do lado direito e no interior do canal vertebral, entre as vértebras L2-L3, com fratura caudal do pedículo direito de L2 (Figura 7).

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Figura 7 – Imagens radiográficas da coluna toracolombar do animal 2, nas projeções lateral (A) e ventrodorsal (B), demonstrando presença de projétil situado externamente ao pedículo vertebral de L2, do lado direito, e no interior do canal vertebral, entre as vértebras L2-L3 (setas vermelhas), com fratura caudal do pedículo vertebral direito de L2 (seta amarela). Créditos: Bruno Martins Araújo

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Diante da gravidade do grau de disfunção neurológica, optou-se pela hemilaminectomia entre L2-L3 do lado direito, objetivando a remoção do projétil, limpeza da ferida e descompressão medular (Figura 8). Para tal, o animal foi posicionado em decúbito esternal e realizou-se uma abor dagem dorsolateral direita à coluna toracolombar. Após identificação das vértebras L2-L3, realizou-se uma hemilaminectomia nesses segmentos. Depois do acesso ao canal vertebral, foi identificado o projétil, e em seguida à sua remoção do canal vertebral, observou-se secção da medula espinhal. Nesse animal, realizou-se apenas a remoção do projétil localizado no interior do canal vertebral, uma vez que no transoperatório não se localizou o fragmento visualizado lateralmente ao corpo vertebral na radiografia pré-operatória. Após lavagem abundante da região, foi feito o fechamento de rotina da ferida cirúrgica.

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Figura 8 – Imagens do procedimento cirúrgico do animal 2 para remoção do projétil e descompressão medular. A) Posicionamento em decúbito esternal, com visualização da ferida e aumento de volume na região lombar direita (seta vermelha). B) Abordagem dorsolateral à coluna toracolombar e realização de hemilaminectomia com auxílio de uma pinça Kerrrison. C) Visualização da parte posterior do projétil (seta branca) no interior do canal vertebral após realização de hemilaminectomia. D) Remoção do projétil. E) Imagem do canal vertebral após a remoção do projétil, na qual não se visualizou a medula espinhal (seta) devido à interrupção anatômica promovida pelo projétil. F) Projétil removido do interior do canal vertebral. Créditos: Bruno Martins Araújo

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No pós-operatório, o animal foi medicado com amoxicilina com clavulanato de potássio e (20 mg/kg, via oral, duas vezes ao dia, por dez dias), cetoprofeno b (1 mg/kg, via oral, uma vez ao dia, por três dias) e cloridrato de tramadol c (4 mg/kg, via oral, três vezes ao dia, por sete dias). Dez dias após o procedimento cirúrgico, foi realizada a remoção dos pontos, na qual não se observaram complicações pós-operatórias e se verificou a completa cicatrização da ferida cirúrgica e do orifício de entrada do projétil. Na avaliação neurológica, não houve recuperação da nocicepção e da deambulação voluntária ou involuntária (Figura 9).

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Figura 9 – Vídeo da avaliação neurológica do caso 2, dez dias após o procedimento cirúrgico. http://youtu.be/2VWBGT_WojM. Créditos: Bruno Martins Araújo

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Trinta dias após o procedimento cirúrgico, não houve recuperação da nocicepção e da deambulação voluntária ou involuntária, recomendando-se a confecção de carrinho ortopédico e cuidados gerais de enfermagem. Não se observaram complicações decorrentes da permanência de um dos projéteis na região do corpo vertebral.

 

Caso 3

Foi apresentada para consulta uma gata SRD, de aproximadamente quatro meses, não castrada, após ter sido encontrada na rua dois dias antes, apresentando ferida contusa na região lombar dorsal e paraplegia.

No exame físico, a gata não apresentava alterações clínicas importantes, e os exames laboratoriais encontravam-se dentro dos parâmetros para a espécie e idade. No exame neurológico, apresentava síndrome lombossacral caracterizada por paraplegia, ausência de reações posturais e propriocepção nos MPS, flacidez muscular nos MPS, reflexos espinhais dos MPS e perineal ausentes. O reflexo cutâneo do tronco encontrava-se ausente caudalmente a L3. A gata apresentava incontinência urinária e fecal e ausência de nocicepção nos MPS e na cauda (Figura 10). 

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Figura 10 – Vídeo da avaliação neurológica durante primeiro atendimento do animal 3 – https://youtu.be/GwSybb8vDag. Créditos: Bruno Martins Araújo

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Com base nos achados, suspeitou-se de traumatismo vertebromedular lombossacral, solicitando-se exame radiográfico da região, que evidenciou fratura oblíqua do corpo de L6 com luxação de L5-L6, fratura dos processos espinhosos e da lâmina dorsal de L6, com alojamento de projétil na região femoral do membro pélvico direito (Figura 11).

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Figura 11 – Imagens radiográficas da coluna lombossacral do animal 3, nas projeções lateral (A) e ventrodorsal (B), evidenciando fratura completa e oblíqua do corpo de L6 com luxação de L5-L6 (seta vermelha) e fratura do processo espinhoso e da lâmina dorsal de L6 (setas brancas), com alojamento de projétil na região femoral do membro pélvico direito (seta amarela). Créditos: Bruno Martins Araújo

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Diante da gravidade da disfunção neurológica e da instabilidade vertebral, optou-se pelo tratamento cirúrgico de laminectomia e de estabilização segmentar dorsal modificada. Na cirurgia, realizou-se a abordagem dorsolateral à coluna lombossacral, que se estendeu do sacro até a segunda vértebra lombar. Após a exposição vertebral, observou-se extensa destruição óssea entre L4 e L6, verificando-se também, após a laminectomia, a destruição do pa rênquima medular nesses segmentos. Devido à extensa perda óssea nos segmentos vertebrais, nas vértebras L4, L5 e L6, que ocasionou dificuldade de redução da fratura por falta de pontos de fixação óssea e pela pequena dimensão óssea do corpo vertebral, realizou-se a redução parcial inicial com a inserção de agulhas de cateter intravenoso n° 24 na fratura oblíqua do corpo vertebral de L6. Diante da extensa perda óssea, só foi possível a fixação dos fios de Kirschner de 1 mm da fixação segmentar dorsal nas asas do ílio, L7, na porção cranial do processo espinhoso de L4 e nos processos articulares de L3 (Figura 12). Após a descompressão medular e a estabilização vertebral, realizou-se a abordagem à face caudolateral do fêmur para remoção do projétil, que se encontrava em plano superficial.

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Figura 12 – Imagens do procedimento cirúrgico do animal 3 para remoção do projétil, descompressão medular e estabilização vertebral. A) Ferida contusa na região lombar, no nível de L2. B) Coluna lombossacral após a abordagem dorsolateral. C) Segmentos vertebrais após laminectomia entre L4-L6 que evidenciou destruição do parênquima medular; observar estabilização primária dos corpos vertebrais com agulhas de cateteres n° 24. D) Fixação vertebral com a técnica de estabilização segmentar dorsal modificada. E) Imagens da região subcutânea após a remoção dos pelos translocados e do espaço morto criado pelo projétil. F) Projétil após a remoção. Créditos: Bruno Martins Araújo

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No pós-operatório, o animal foi medicado com cefalexina a (30 mg/kg, via oral, três vezes ao dia, por dez dias), cetoprofeno b (1 mg/kg, via oral, uma vez ao dia, por três dias), cloridrato de tramadol c (4 mg/kg, via oral, três vezes ao dia, por sete dias) e cloridrato de ranitidina d (2 mg/kg, duas vezes ao dia, por dez dias). Uma semana após o procedimento foram realizadas as radiografias pós-operatórias (Figura 13) e removeram-se os fios de sutura, sem complicações. Na avaliação neurológica, não houve nenhuma melhora pós-operatória, já que o animal permanecia sem nocicepção nem reflexos espinhais nos MPS (Figura 14).

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Figura 13 – Imagens radiográficas pós-cirúrgicas do animal 3, nas projeções lateral (A) e ventrodorsal (B), evidenciando redução parcial da fratura do corpo de L6 e da luxação em L5-L6 com pinos nos corpos vertebrais por meio de estabilização segmentar dorsal modificada. Créditos: Bruno Martins Araújo

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Figura 14 – Vídeo da avaliação neurológica uma semana após o procedimento cirúrgico do animal 3. http://youtu.be/FJurOyIG9bY. Créditos: Bruno Martins Araújo

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Três meses após o procedimento cirúrgico, não houve recuperação da nocicepção e da deambulação voluntária ou involuntária, e o animal permaneceu com incontinência urinária e fecal, recomendando-se a confecção de carrinho ortopédico e cuidados gerais de enfermagem.

 

Caso 4

Uma gata SRD, não castrada, com aproximadamente três meses de idade, que havia sido resgatada da rua havia trinta dias, foi encaminhada para avaliação neurológica com histórico de paraplegia.

No exame físico, percebeu-se a presença de cicatriz na pele adjacente às vértebras L1-L2 do lado esquerdo do tronco, sem alterações clínicas importantes em outros sistemas. Os exames laboratoriais encontravam-se dentro dos parâmetros para a espécie e a idade.

Na avaliação neurológica, observaram-se: paraplegia, ausência de propriocepção e reações posturais nos MPS, reflexos espinhais aumentados nos MPS com reflexo em massa positivo, presença de reflexo extensor cruzado e de Babinski, ausência do reflexo cutâneo do tronco caudalmente a L3, atrofia muscular na região pélvica, bem como nos MPS, tônus muscular diminuído, retenção urinária, dor à palpação epaxial no nível da cicatriz dérmica, ausência de nocicepção nos MPS e na cauda e presença de movimentação involuntária esporádica dos MPS, caracterizando reflexo em massa e possível início de desenvolvimento de caminhar espinhal (Figura 15).

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Figura 15 – Vídeo da avaliação neurológica durante primeiro atendimento do animal 4 – http://youtu.be/4BiDWzvysag. Créditos: Sérgio Diego Passos Costa

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­Diante da avaliação neurológica, solicitou-se exame radiográfico da coluna toracolombar, por meio do qual foi possível confirmar a presença de estruturas radiopacas com dimensões aproximadas de 0,5 x 0,5cm no interior do canal vertebral, entre as vértebras L1 e L2, do lado es quer do, assemelhando-se a fragmentos de projétil (Figura 16).

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Figura 16 – Imagens radiográficas da coluna toracolombar do animal 4, nas projeções lateral (A) e ventrodorsal (B), demonstrando presença de projéteis situados no interior do canal vertebral (seta vermelha), entre as vértebras L1 e L2, predominantemente do lado esquerdo (E). Créditos: Sérgio Diego Passos Costa

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Diante da gravidade do dano neurológico, apesar do excesso de tempo transcorrido, o tratamento cirúrgico foi indicado, por se tratar de um corpo estranho em contato com tecido neural.

No procedimento cirúrgico, foi feita a abordagem dorsolateral à coluna vertebral, e em seguida realizou-se a pediculectomia esquerda, entre as vértebras L1 e L2, que permitiu acesso ao canal vertebral para a remoção do projétil (Figuras 17 e 18). Durante o procedimento, foi possível confirmar que havia interrupção anatômica da medula espinhal, devido à presença do projétil no interior do canal vertebral. Foram realizados uma copiosa lavagem do sítio cirúrgico e o fechamento de rotina da ferida cirúrgica.

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Figura 17 – Imagem transoperatória do momento da remoção do projétil do canal vertebral, após a realização de pediculectomia entre L1 e L2 (A), e dos fragmentos do projétil após a remoção (B). Créditos: Thays Garreto Rodrigues dos Santos

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Figura 18 – Vídeo do transcirúrgico do animal 4 no momento da remoção do projétil do interior do canal vertebral – http://youtu.be/dkAUZiGQit8. Créditos: Thays Garreto Rodrigues dos Santos­

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No pós-operatório, o animal foi medicado com amoxicilina com clavulanato de potássio e (20 mg/kg, via oral, duas vezes ao dia, por dez dias), cetoprofeno b ( 1mg/kg, via oral, uma vez ao dia, por três dias), cloridrato de tramadol c (4 mg/kg, via oral, três vezes ao dia, por sete dias) e cloridrato de ranitidinad (2 mg/kg, duas vezes ao dia, por dez dias). Não houve complicações cirúrgicas, e as suturas foram removidas quinze dias após o procedimento. Nesse período, o animal permaneceu sem nocicepção.

Trinta dias após o procedimento cirúrgico, não houve recuperação da nocicepção e da deambulação voluntária ou involuntária. Foram recomendados a confecção de um carrinho ortopédico e cuidados gerais de enfermagem (Figura 19).

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Figura 19 – Vídeo da avaliação neurológica trinta dias após o procedimento cirúrgico do animal 4 – http://youtu.be/rF1Bf36BxGA. Créditos: Sérgio Diego Passos Costa

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Caso 5

Foi apresentado para consulta um felino SRD, macho, adulto jovem, não castrado, após ser resgatado no dia anterior com ferida perfurocontusa na região dorsolateral esquerda e paraplegia.

No exame físico, esse gato não apresentava alterações clínicas importantes, e os exames laboratoriais encontravam-se dentro dos parâmetros para a espécie e a idade.

No exame neurológico, observaram-se paraplegia (Figura 20), ausência de reações posturais e propriocepção nos MPS, reflexos espinhais normais, reflexo cutâneo do tronco ausente caudalmente a L3, incontinência urinária, hiperpatia no nível de T11-L3, e ausência de nocicepção nos MPS e na cauda.

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Figura 20 – Vídeo do quadro de paraplegia no primeiro atendimento do animal 5 – http://youtu.be/elN8Xj8fwF4. Créditos: Nadyne Lorrayne Farias Cardoso Rocha

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­Diante do histórico e do exame neurológico, suspeitou-se de trauma medular toracolombar, sendo solicitado exame radiográfico da região, que demonstrou a presença de projétil no nível do forame intervertebral, na região média do pedículo e no corpo das vértebras T13-L1 (Figura 21).

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Figura 21 – Imagens radiográficas da coluna toracolombar do animal 5, nas projeções lateral (A) e ventrodorsal (B), demonstrando presença de projétil situado no nível do forame intervertebral deT13-L1 (seta), do lado esquerdo (E). Créditos: Nadyne Lorrayne Farias Cardoso Rocha

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Após a avaliação neurológica e a análise radiográfica, optou-se pela realização de uma pediculectomia do lado esquerdo, objetivando a remoção do projétil e dos fragmentos ósseos no interior do canal vertebral e a descompressão medular (Figura 22). Para o procedimento cirúrgico, o animal foi posicionado em decúbito esternal, realizando-se abordagem dorsolateral à coluna toracolombar, que permitiu a identificação do projétil no nível do espaço intervertebral de T13-L1. Após a remoção do projétil e de uma moderada quantidade de pelos no tecido subcutâneo, realizou-se uma pediculectomia entre as vértebras T13-L1, do lado es querdo, objetivando descomprimir a medula espinhal. Durante o procedimento, observou-se a integridade da raiz nervosa esquerda; a medula espinhal encontrava-se intacta macroscopicamente. Após abundante lavagem, foi realizado o fechamento da ferida cirúrgica.

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Figura 22 – Imagens do procedimento cirúrgico do animal 5 para remoção do projétil e descompressão medular. A) Ferida perfurocontusa com presença de tecido necrótico na região lombar, do lado esquerdo, no nível de T13. B) Coluna toracolombar após a abordagem dorsolateral e a exposição do projétil. C) Remoção de grande quantidade de pelos (seta vermelha) no tecido subcutâneo e na musculatura epaxial. D) Remoção de pelos (seta) na musculatura epaxial. E) Pediculectomia (seta amarela) após a remoção do projétil. F) Projétil após a remoção (seta). Créditos: Thays Garreto Rodrigues dos Santos

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No pós-operatório, o animal foi medicado com amoxicilina com clavulanato de potássio e (20 mg/kg, via oral, duas vezes ao dia, por dez dias), cetoprofeno b (1 mg/kg, via oral, uma vez ao dia, por três dias), cloridrato de tramadol c (4 mg/kg, via oral, três vezes ao dia, por sete dias) e cloridrato de ranitidina d (2 mg/kg, duas vezes ao dia, por dez dias).

No pós-operatório, o animal foi medicado com amoxicilina com clavulanato de potássio e (20 mg/kg, via oral, duas vezes ao dia, por dez dias), cetoprofeno b (1 mg/kg, via oral, uma vez ao dia, por três dias), cloridrato de tramadol c (4 mg/kg, via oral, três vezes ao dia, por sete dias) e cloridrato de ranitidina d (2 mg/kg, duas vezes ao dia, por dez dias). Não houve complicações cirúrgicas, e as suturas foram removidas quinze dias após o procedimento. Nesse período, o animal permaneceu sem nocicepção.

Dez dias após o procedimento cirúrgico, a ferida cirúrgica e o orifício de entrada estavam completamente cicatrizados. Foi feita a remoção dos pontos, não sendo observadas complicações pós-operatórias. Na avaliação neurológica, o animal permanecia sem nocicepção, mas apresentava reflexo em massa na manipulação dos MPS.

Trinta dias após o procedimento cirúrgico, foi realizada uma nova avaliação, na qual se verificou que o animal permanecia sem nocicepção nos MPS e na cauda; no entanto, desenvolveu um quadro compatível com paraparesia deambulatorial intermitente. A movimentação involuntária foi atribuída ao mecanismo de caminhar espinhal (Figura 23).

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Figura 23 – Vídeo da avaliação neurológica trinta dias após o procedimento cirúrgico do animal 5 – http://youtu.be/vZk328iMKdM. Créditos: Nadyne Lorrayne Farias Cardoso Rocha

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Resultados e discussão

Em todos os casos, a suspeita clínica foi obtida por meio de resenha, anamnese, exame clínico e achados do exame neurológico. Os cinco apresentavam déficit de locomoção por lesão medular focal associado à presença de feridas perfurocontusas em topografia de coluna vertebral.

As lesões foram confirmadas pelo exame radiográfico, que foi suficiente para determinar o diagnóstico por visualização das alterações vertebrais e localização dos projéteis nos cinco felinos.

Em relação à identificação, os cinco animais eram de rua, jovens e não castrados, o que foi considerado um fator de risco para traumatismo vertebromedular provocado por projétil, corroborando relatos anteriores que mencionavam que os felinos que vagueiam livremente sem supervisão correm maior risco de receber ferimentos por armas 7-12.

Apesar de apenas o exame radiográfico ter sido suficiente para o diagnóstico da lesão por meio da visualização das alterações vertebrais e dos projéteis nos cinco casos, não foi possível avaliar com detalhes a ocorrência de pequenas fraturas vertebrais, a presença de fragmentos ósseos e microfragmentos dos projéteis no interior do canal vertebral e a mensuração precisa do projétil – detalhes esses que a tomografia computadorizada permite determinar, tal como foi descrito em outro trabalho 7.

Em quatro dos cinco animais, foi possível identificar o projétil próximo à coluna vertebral. Desses quatro animais, em um deles o projétil se localizava no interior do canal vertebral (animal 4); em dois, estava localizado no pedículo (estrutura óssea localizada lateralmente ao forame vertebral, que, junto com a lâmina, forma o arco vertebral) e no corpo vertebral (ambos externamente ao canal vertebral) (animais 1 e 5); e em um animal, havia fragmentos de projéteis tanto no interior quanto no exterior do canal vertebral (animal 2). Em apenas um animal (animal 3), o projétil que promoveu a fratura vertebral foi localizado distante da coluna vertebral, uma vez que ele a atravessou e seguiu pela região subcutânea até a região femoral. Esses achados corroboraram trabalhos que mencionaram que os projéteis advindos de arma de ar comprimido, devido a sua baixa velocidade, não costumam atravessar as estruturas ósseas dos seres humanos e dos animais 18,19.

Os projéteis penetraram o canal vertebral (dois casos), afundaram o pedículo e o corpo vertebral (dois casos) e fraturaram a vértebra ao atravessar as estruturas ósseas (um caso); com base em relatos anteriores, provavelmente esses projéteis que atingiram os cinco felinos foram disparados a curta distância 4,18. Esses autores referem que os tiros de arma de ar comprimido disparados a longa e média  distância têm penetração limitada na hipoderme e na musculatura subjacente. No entanto, quando tiros de arma de ar comprimido são disparados a curta distância, podem penetrar profundamente no corpo dos animais, o que justifica a gravidade das lesões nos cinco felinos deste estudo. Em trabalho anterior, os autores concluíram que os projéteis que atingiram os animais foram disparados de longa distância, uma vez que 71,4% deles se encontravam no tecido subcutâneo ou em superfícies musculares superficiais 18.

Após a remoção dos projéteis, eles foram identificados como sendo de arma de ar comprimido (chumbinho), já que têm formato de ampulheta e pouca massa. Esse dado é semelhante ao encontrado em um estudo com 66 gatos acometidos por trauma provocado por projétil, no qual se comprovou que 80% dos casos foram provocados por arma de ar comprimido 10. No estudo envolvendo dez felinos, sete dos dez casos tiveram lesões causadas por esse tipo de arma 18.

A maior representação das armas pneumáticas (ar comprimido) neste trabalho pode ser justificada pela descrição de estudo que mencionou que a falta de ruído para evitar detecção da arma torna os felinos mais suscetíveis ao trauma, especialmente em áreas urbanas mais populosas 10. Além disso, a compra de armas pneumáticas no Brasil não está sujeita a qualquer regulamentação legal, e, portanto, elas são fáceis de obter.

O tratamento e o prognóstico de animais que apresentam feridas provocadas por armas podem variar consideravelmente, dependendo da localização das lesões e da extensão dos danos 7. Em todos os animais deste estudo, as lesões ficaram confinadas apenas à coluna vertebral e à medula espinhal, não sendo encontradas lesões concomitantes em outros órgãos e tecidos. Dessa forma, o tratamento ficou apenas limitado a descompressão medular e estabilização vertebral. As lesões focais na medula espinhal contrariaram casos relatados por outros autores 5, nos quais todos os animais (três cães e um gato) acometidos por lesões de projéteis balísticos apresentavam graves traumas internos (torácicos e abdominais), sendo todos submetidos a laparotomia e/ou toracotomia de emergência, dos quais um dos cães veio a óbito no pós-cirúrgico. Outro autor descreveu um caso de perfuração de vesícula biliar e trauma diafragmático em um felino acometido por projétil balístico 20.

Em relação aos procedimentos cirúrgicos realizados, a escolha se baseou na técnica menos invasiva que possibilitou remoção do projétil, adequada inspeção e descompressão medular, visando promover menor instabilidade adicional à coluna vertebral. Em dois animais (animais 4 e 5), esse objetivo foi alcançado com a pediculectomia, e em outros dois (animais 1 e 2), com hemilaminectomia. Em um animal foi realizada a laminectomia dorsal (animal 3). Nos animais submetidos apenas a pediculectomia e hemilaminectomia, não foram detectados sinais transoperatórios de instabilidade vertebral antes e após a descompressão, não sendo necessária a estabilização vertebral, conforme previsões anteriores de outros autores 21. No animal 3, foi realizada uma laminectomia, sendo a escolha da técnica baseada na extensão da destruição óssea. Nesse animal, devido à presença de instabilidade vertebral caracterizada pela descontinuidade dos três compartimentos provocada pelo projétil e à remoção do compartimento dorsal durante a descompressão, foi necessária a estabilização vertebral, corroborando as recomendações de outros autores 21. A técnica escolhida foi a de estabilização segmentar dorsal.

Dos cinco animais descritos no presente trabalho, somente um (animal 1) não apresentava alterações na nocicepção. No pós-operatório, esse paciente manteve a nocicepção (dor superficial e profunda) intacta, e houve recuperação completa da deambulação voluntária e das funções viscerais, ao passo que, dos quatro animais que perderam a nocicepção, nenhum a recuperou, nem tampouco a deambulação voluntária e a continência urinária e fecal. Neste estudo, a presença do fragmento no interior do canal vertebral, acompanhada da perda da nocicepção, determinou um prognóstico desfavorável nos casos 2 e 4.

O parâmetro de ausência ou presença de nocicepção foi um indicativo do prognóstico, pois o animal que manteve a nocicepção recuperou a deambulação voluntária e as funções viscerais; os animais que a perderam não voltaram a caminhar voluntariamente 22.

Em quatro animais, a lesão foi na região toracolombar, e em um, na lombossacral. Nos animais com lesão toracolombar, houve melhor prognóstico, de acordo com a informação de que o trauma na região toracolombar da medula espinhal tem melhor prognóstico em relação ao da região lombossacral, devido ao fato de os núcleos dos neurônios motores inferiores que suprem os MPS se localizarem na região lombossacral 23. No único animal com lesão lombossacral, não houve recuperação da locomoção e das funções viscerais, corroborando o relato da mesma autora 23.

A localização da lesão na região toracolombar beneficiou o animal 5, que, mesmo diante da lesão medular grave caracterizada por perda da nocicepção, teve a possibilidade de desenvolver o caminhar espinhal. Esse fato corroborou o relato de alguns autores que mencionaram que um dos pré-requisitos para o desenvolvimento do caminhar espinhal é que a lesão seja na região toracolombar da medula espinhal, permitindo manter intactos os neurônios motores inferiores da região lombossacral e suas conexões com estímulos sensitivos advindos dos MPS e facultando a movimentação involuntária dos membros 24-26.

A gravidade das lesões medulares corroborou trabalhos anteriores 10,13 quando mencionaram que, apesar de seu tama nho pequeno, velocidade moderada e mau design aerodinâmico, os projéteis de armas de ar comprimido (chumbinho) podem causar traumas graves em animais pequenos, e quando acometem a medula espinhal podem causar lesão grave e até mesmo a interrupção anatômica e funcional da medula, conforme ocorreu em quatro animais, que permaneceram paraplégicos após o tratamento, devido à severidade do trauma medular agudo, à interrupção anatômica e à laceração medular promovidos pelo projétil.

Os autores deste trabalho concordam com outros autores 21,28 que destacam que, uma vez que a lesão compromete irreversivelmente a medula espinhal, causando perda da nocicepção, a chance de recuperação é bastante diminuída, já que nenhum dos animais com essas características descritos no presente estudo apresentou recuperação voluntária da deambulação. Concordam também com a opinião de que, apesar da impossibilidade de os animais voltarem a caminhar, a cirurgia pode ser realizada para diminuir a dor, descomprimir as estruturas neurais e reduzir os riscos de infeção e de degeneração neural provocadas pelo projétil, e que o uso de um carrinho ortopédico aliado a cuidados básicos de enfermagem pode permitir que os animais tenham melhor qualidade de vida, mesmo que o seu estado neurológico não melhore 29.

Todos os animais referidos neste trabalho permaneceram sob cuidados dos tutores que os resgataram, e nenhum deles foi submetido a eutanásia, ao contrário de outros relatos sobre felinos acometidos por lesão medular provocada por projéteis que perderam a nocicepção. Alguns casos descritos na literatura veterinária com fragmentos de bala ainda presentes no canal vertebral e que perderam a nocicepção passaram por eutanásia logo após o exame inicial ou no transoperatório, possivelmente pelo fato de os médicos veterinários não recomendarem a cirurgia ou a progressão do tratamento devido ao prognóstico desfavorável de não recuperação funcional da deambulação 2,7.

A extração do projétil foi realizada em todos os animais durante os procedimentos descompressivos, principalmente nos que apresentavam fragmentos no interior do canal vertebral, pois a permanência desses fragmentos aumentava a possibilidade de desenvolvimento de meningomielite ou de destruição neuronal, corroborando os relatos de autores que mencionaram que os fragmentos dos projéteis causaram toxicidade neural local envolvendo até 10% da área da medula espinhal adjacente 30. Em um animal não foi encontrado o projétil localizado lateralmente à coluna vertebral (animal 2), e não se observaram sinais de infecção ou de complicações referentes ao projétil trinta dias após a cirurgia.

Esse resultado foi semelhante a de relato anterior, que mencionou que, em três felinos acometidos por trauma medular provocado por projétil balístico, o procedimento cirúrgico mostrou-se eficiente, mesmo diante da ausência de nocicepção em dois animais, não sendo observadas complicações pós-cirúrgicas nem sinais de infecção em nenhum dos casos 29. Os resultados também corroboraram a baixa taxa de infecção encontrada por outros autores em 122 casos, com apenas 4 casos (0,8%) de infecção provocada pelo projétil balístico 9.

O desenvolvimento de deambulação involuntária no animal 5 foi atribuído ao caminhar espinhal, com base no relato de que o surgimento de atividade motora em animais que permanecem sem nocicepção está relacionado ao caminhar espinhal reflexo, originado do mecanismo de plasticidade neuronal e da formação de circuitos locais ou de axônios sobreviventes que atravessam o sítio da lesão 31.

O reconhecimento do caminhar espinhal seguiu os parâmetros descritos na literatura 32, pois nesse animal a nocicepção estava ausente, os reflexos espinhais dos MPS se mostravam normais, os MPS não acompanhavam os torácicos e ele demonstrou dificuldade de caminhar nas curvas e inaptidão de caminhar para trás.

A ocorrência de cinco casos se deu em um período de oito anos em dois hospitais veterinários universitários que realizam cerca de 9 mil atendimentos por ano 33, caracterizando 0,05% dos casos – o que corroborou os estudos que afirmam ser essa ocorrência incomum em animais, principalmente em felinos 3,7-9. Outro estudo retrospectivo relatou um caso de trauma medular provocado por projétil em felino em um período de três anos 6. Um outro estudo que analisou lesões penetrantes em cães e gatos durante um período de cinco anos descreveu 16 casos. Desses, apenas quatro foram provocados por projéteis balísticos, sendo todos em cães 5.

 

Conclusões

Em todos os casos, os dados da resenha e da anamnese, os achados do exame neurológico e o posterior exame radiográfico foram suficientes para o diagnóstico de traumatismo provocado por projéteis nos felinos relatados, sendo os felinos de rua, jovens e não castrados pertencentes ao grupo de risco para esse tipo de afecção.

A presença de projétil no interior do canal vertebral foi considerada fator determinante de prognóstico desfavorável, devido à interrupção anatômica que ele promove ao ocupar espaço no canal vertebral.

Em todos os casos, o procedimento cirúrgico mostrou-se eficiente, mesmo diante da ausência de recuperação funcional em quatro animais (decorrente de dilaceração medular), não sendo observadas complicações pós-cirúrgicas nem sinais de infecção decorrente do projétil em nenhum dos casos.

 

Agradecimentos

Às equipes de anestesiologia e diagnóstico por imagem dos hospitais veterinários universitários da UFRPE e da UFPI.

 

Produtos utilizados

a) Cefalexina Suspensão 250 mg/5 mL. Eurofarma. São Paulo, SP, Brasil

b) Cetoprofeno 20 mg/mL. Eurofarma. São Paulo, SP, Brasil

c) Cronidor 1 2mg. Agener União. Brasília, DF, Brasil

d) Cloridrato de ranitidina 75 mg/5 mL. União Química Farmacêutica Nacional. São Paulo, SP, Brasil

e) Amoxicilina com clavulanato de potássio 250 mg/5 mL. Eurofarma. São Paulo, SP, Brasil

 

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