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Por que temos cães?

Créditos: Fernando Gonsales Créditos: Fernando Gonsales

A maioria das pessoas no Brasil relata que seus animais são membros da família, ou seja, são mais de 52 milhões de cães de companhia em quase metade dos lares brasileiros. O que nos faz ver nossos cães dessa maneira? Afinal, por que gostamos tanto deles?

A explicação é científica. Cada pessoa é in fluenciada por fatores filogenéticos (referentes à nossa espécie), fatores ontogenéticos (referentes à experiência individual) e fatores culturais (referentes à sociedade em que estamos inseridos). A hipótese da biofilia está relacionada aos primeiros fatores, pois temos uma tendência inata de focar nossa atenção na vida e em seus processos 1. O termo biofilia expressa essa vontade de se afiliar às outras formas de vida e à natureza, que está presente geneticamente no homem.

Todos nós, portanto, já apresentamos, desde o nascimento, a propensão de nos conectarmos aos seres vivos. Mas nem todas as pessoas acabam gostando de animais. Em parte porque, ao longo da vida, cada indivíduo terá diferentes experiências com eles. Duas teorias podem explicar nosso vínculo com os animais: a teoria do apego e a teoria da aprendizagem.

 

Teoria do apego

A teoria do apego surgiu nos anos 1950, quando o psicólogo John Bowlby foi designado pela Organização Mundial da Saúde para fazer um relatório sobre a saúde mental de crianças europeias órfãs no pós-guerra. Sua grande conclusão foi que as crianças devem ter uma boa experiência numa relação íntima com seu cuidador para crescerem mentalmente saudáveis. No cenário da época, o comportamento do apego foi definido como um comportamento de aproximação com a figura de apego e que persiste ao longo do tempo, cuja função é proteger a criança de perigos e possibilitar o fornecimento de recursos pelo cuidador 2.

Apesar da formação psicanalítica de John Bowlby, a teoria do apego é derivada de conceitos e métodos da etologia, ciência do comportamento animal. Logo, essa teoria pôde ser utilizada em estudos comparativos para compreender o sistema de apego, incluindo estudos com cães. Todos os resultados indicam que o relacionamento partilhado entre homem e cão está de acordo com os postulados da teoria, ou seja, o cão divide uma relação de proximidade e segurança com o homem que persiste ao longo do tempo.

A função dessa relação pode ser a mesma que existe entre os seres humanos: proteção (bem como proteger, por parte do cuidador) e possibilidade de fornecimento de recursos. Segundo a teoria, os vínculos iniciados entre criança e cuidador possibilitam a formação de outros vínculos futuros. Podemos incluir a formação de vínculos com animais dentro dessa perspectiva.

 

Teoria da aprendizagem

Outra hipótese para explicar nossa vinculação com os animais deriva da teoria da aprendizagem. Desde o nascimento, somos expostos a animais de diversas maneiras: bichos de pelúcia, estampas do vestuário, personagens de livros e programas de televisão. A partir dessa exposição, Brickel sugere que a teoria da aprendizagem postula que aprendemos a perceber que os animais representam estímulos cheios de propriedades emocionais positivas 3. Principalmente dentro da família, vemos a constante ligação da presença dos nossos pais, que são fonte de amor, com estímulos neutros como bichos de pelúcia. Com o passar do tempo e de repetidos pareamentos, aprendemos que essas situações são positivas. Se houver um animal em casa, as aproximações da criança com o animal também podem ser incentivadas e valorizadas pelos pais por meio de elogios, mostrando como fazer carinho, como demonstrar afeto e, é claro, por meio dos próprios comportamentos do animal (Figura 1).

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Figura 1 – Praticando a teoria da aprendizagem. Créditos: Nathalie Photography

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Antropomorfização

Quando essas interações acontecem na infância, há uma grande antropomorfização dos animais, ou seja, atribuem-se características tipicamente humanas a eles. Nas brincadeiras ou fantasias da criança, os animais se tornam protagonistas, agentes de ações. A literatura infantil cria personagens fantásticos que se comunicam, pensam e agem como seres humanos, resultando numa forte identificação das crianças com esses personagens, identificação essa que pode moldar a maneira de perceber e de se relacionar com os animais.

Esta antropomorfização é apontada como necessária para o relacionamento entre humanos e animais, uma vez que, sem a atribuição de sentimentos, pensamentos, desejos e motivações consideradas humanas aos animais, esse relacionamento se tornaria insignificante 4. A antropomorfização faz com que o animal de companhia se torne um membro da família, com direito a fotografias, festas de aniversário e rituais fúnebres. Ele é visto como um ser dotado de valor, qualidades e características próprias, que lhe conferem personalidade e caráter.

 

Eis que surge o cão e seus problemas

Para aproximar essas expectativas de características humanizadas aos animais, o ser humano utilizou a seleção antropomórfica. Dessa forma, características físicas e comportamentais foram selecionados por meio de cruzamentos específicos, gerando animais que são mais próximos da percepção antropomorfizada do ser humano. Embora diferentes raças de equinos, muares e cães de guarda tenham sido selecionadas para o trabalho, e várias características de produção de carne e leite tenham sido aperfeiçoadas nos bovinos e nas aves poedeiras, muitas raças de animais foram selecionadas exclusivamente para dar companhia aos seres humanos.

Esse processo deu origem a vários problemas, como o que ocorre com a raça buldogue, por exemplo, a qual, para ser esteticamente agradável, sofre de diversos males físicos decorrentes da conformação do focinho, dos membros e da pelve 4. Outras raças de cães passaram ainda por outros sofrimentos, não só físicos (como o corte de orelhas e do rabo) mas também comportamentais, como ansiedade de separação e os relacionados a comportamentos ritualizados, os quais foram selecionados sem intenção ao se desejar animais mais dependentes ou “leais”.

O autor traça nesta abordagem um limite para a reprodução de animais de companhia, que é a criação de animais com deficiências físicas e/ou comportamentais para a conveniência dos padrões da moda 4. Na nossa sociedade, a popularização das raças se dá na cultura pelo apelo fashion do cão (influência social), e não por sua função (características intrínsecas). Além disso, as raças mais populares têm mais problemas herdados, sugerindo que a saúde dos animais é desconsiderada no momento das práticas de reprodução, bem como na aquisição de um cão 5.

Muitos cães e gatos vivem em péssimas condições para procriação, prejudicando sua saúde física e bem-estar. Nos Estados Unidos, há diversas legislações regulamentando os canis de produção, mas muitos estados ainda não possuem leis para a proteção desses animais, sendo que mais de 2 milhões de animais são provenientes desses estabelecimentos. No Brasil, pouco se sabe sobre a realidade dos estabelecimentos que produzem cães de raça para venda, mas há relatos de que as condições podem ser semelhantes às observadas nos Estados Unidos, como os recentes relatos de apreensões em Curitiba e outras capitais brasileiras (Figura 2).

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Figura 2 – Cão fêmea da raça beagle, adulta e utilizada como matriz reprodutiva, apreendida em baia de canil ilegal durante vistoria no município de Curitiba. A demanda e a comercialização indiscriminada de animais de raça sem a devida assistência médico-veterinária têm levado a situações claras de maus tratos com os animais, tipificado como crime federal segundo a Lei 9605/1998

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Essa é apenas uma das consequências adversas da antropomorfização. Outros também apontam os problemas de retratar os animais de forma humanística por desenhos, filmes e livros 6. Ao adquirir um animal, o homem passa a esperar certos comportamentos que eles não são biologicamente capazes de fazer. Cria-se uma representação deturpada dos animais, podendo gerar descontentamento com o animal de companhia adquirido. Dessa forma, as boas experiências incentivadas no início da infância são comprometidas por expectativas irreais criadas pelos pais e pela cultura.

 

Teoria da aprendizagem social

A exposição da criança aos elementos da cultura e à mídia envolvendo animais gera outro processo de aprendizagem: a aprendizagem por observação, conceito básico da teoria de aprendizagem social 7. Ela acontece quando a aprendizagem se dá por meio da observação do comportamento de outra pessoa. Dessa forma, quando a criança observa interações positivas com animais, ocorre um novo aprendizado. Isso pode ocorrer tanto por meio da mídia como também por meio da observação de interações reais da família com o animal de companhia do lar (Figura 3).

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Figura 3 – A aprendizagem social sendo replicada no cotidiano familiar. Créditos: Monkey Business Images

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A força da vinculação, portanto, entre nós e os cães está relacionada às primeiras interações positivas ou negativas na infância. Criamos preferências e afinidades, possibilitando a construção de uma concepção de família que englobe e perpetue o ciclo de valorização do animal de companhia. Além disso, somos exemplos constantes para a sociedade, por meio da convivência com os outros, das escolhas de produtos e serviços consumidos e dos modelos culturais que decidimos apoiar, sejam eles em forma de livro, filme, programa de televisão etc.

Portanto, a valorização que damos ao cão de companhia está presente não somente no modo como nos relacionamos com ele, mas também em nossas ações cotidianas, e, infelizmente, acabamos não percebendo que sofremos essas influências. Desse modo, para continuarmos valorizando os animais, nossas ações devem refletir nossos valores, proporcionando mais qualidade de vida e bem-estar aos animais. Nada menos do que eles nos dão todos os dias, fruto de nossas seleções baseadas em vontades e anseios antropocêntricos.

Um bom exemplo é a adoção de um animal de companhia. Existem milhões de animais abandonados em todo mundo, sendo que alguns nunca tiveram um lar (Figura 4). Além de retirá-los de situações precárias – seja a rua, canis municipais ou abrigos superlotados – há evidências de que quem adota um cão têm um vínculo mais forte com ele, segundo mestrado realizado recentemente na Universidade de São Paulo 8. A Medicina Veterinária do Coletivo procura entender as relações entre o ser humano e os animais, buscando melhorar as boas relações e prevenir as relações deletérias tais como mordidas (Figura 5), depressões, doenças psicológicas, entre outras.

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Figura 4 – Um bom exemplo é adotar um animal de companhia. Há evidências de que quem adota seu cão têm vínculo mais forte com ele 8

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Figura 5 – Cão mestiço pit bull que atacou o rosto de adolescente de 14 anos no quintal de sua casa, e apresentando a pelagem tingida de sangue, recebe carinho e tristeza das mãos do seu dono e pai do garoto atingido em Curitiba. O professor e especialista Alan Beck (Purdue University, EUA) questiona a criação e a manutenção históricas de raças selecionadas artificialmente para briga de rinha entre cães

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Referências

1-WILSON, E. O. Biophilia. Boston, 1. ed. Harvard University Press, 1984. 157p. Dispnível em : <http://www.blogher.com/interview-dr-alan-beck-directorcenter-humananimal-bond>.

2-BOWLBY, J. Apego e perda, tristeza e depressão. São Paulo, 1. ed. Martins Fontes, 1980. 540 p.

3-BRICKEL, C. M. Initiation and maintenance of the human-animal bond. Marriage & Family Review, v. 8, n. 3-4, p. 31-48, 1985.

4-SERPELL, J. A. Anthropomorphism and anthropomorphic selection – beyond the “cute response”. Society and Animals, v. 1, n. 1, p. 83-100, 2003.

5-GHIRLANDA, S. ; ACERBI, A. ; HERZOG, H. ; SERPELL, J. A. Fashion vs. function in cultural evolution: the case of dog breed popularity. Plos One, v. 8, n. 9, 1-6, 2013.

6-HENDERSON, M. V, ; ANDERSON, A. J. Z. Pernicious portrayals: the impact of children’s attachment to animals of fiction on animals of fact. Society and Animals, v. 13, n. 4, p. 297-314, 2005.

7-BANDURA, A. Social learning theory. New York: General Learning Press, 1971. 46 p.

8-FRANK, AC. Semelhanças e diferenças entre adotar, comprar ou ganhar um cão de companhia na cidade de São Paulo. 2015. Dissertação (Mestrado em Epidemiologia Experimental Aplicada às Zoonoses) – Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/10/10134/tde-28012016-143527/>.

9-CLISBY, H. Interview: Dr. Alan Beck, Diretor, Center for Human-Animal Bond. Blogher, 2010. Disponível em: <http://www.blogher.com/interview-dr-alan-beck-director-centerhumananimal-bond>. Acesso em 7/4/16.