Uso de cannabis na medicina veterinária
Um campo promissor cercado de desafios

Com as transformações regulatórias e a evolução da percepção social em relação à cannabis em todo o mundo, há um notável e crescente interesse nas propriedades terapêuticas potenciais dos canabinoides em diversas áreas, e a medicina veterinária não é exceção. A comercialização de produtos de cannabis destinados a animais de estimação, em particular, tem-se expandido rapidamente.
No dia 5 de novembro de 2024, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 936/2024, oficializando a prescrição de produtos canabinoides por médicos-veterinários para animais de forma regulamentada. A decisão abre portas para pesquisas clínicas, amplia opções terapêuticas e garante que tratamentos antes restritos sejam feitos com mais qualidade e segurança.
Existe hoje uma tendência promissora para uso de derivados de cannabis em animais domésticos e de produção, mas ainda precisamos avançar na comprovação científica. Isso significa conduzir estudos multissetoriais, bem desenhados, com diferentes grupos de tratamento e posologias definidas.
Atualmente, o uso de canabinoides na medicina veterinária é, infelizmente, ilegal na maioria dos países, principalmente devido à escassez de medicamentos baseados em evidências científicas sólidas. Apesar dessas restrições, pesquisas revelam um forte interesse por parte dos tutores de animais. Um estudo on-line de 2019, que incluiu 2.130 veterinários nos Estados Unidos, demonstrou que aproximadamente 63% dos tutores questionavam sobre produtos com canabidiol (CBD) com frequência (diária, semanal ou mensal). Além disso, a maioria dos médicos-veterinários entrevistados concordou que tanto a cannabis quanto os produtos de CBD oferecem benefícios para a saúde humana e expressaram apoio ao uso de produtos de CBD na veterinária.
Outra pesquisa, também de 2019, realizada com tutores de animais no Canadá, identificou que os proprietários adquiriam produtos de cannabis para tratar dor, inflamação e ansiedade em cães. Muitos perceberam que essas preparações eram tão ou mais eficazes que os medicamentos convencionais. Embora os tutores se sentissem à vontade para discutir a administração de cannabis com seus veterinários, a maioria ainda dependia de sites comerciais para obter informações sobre os produtos. As principais razões para a escolha de produtos de cannabis incluíam sua capacidade de uso como adjuvante de outras terapias e a percepção de serem substâncias naturais.
É importante frisar que os EUA e o Canadá representam os dois maiores mercados globais para o uso da cannabis medicinal. Esses dados de pesquisa sublinham o elevado interesse dos tutores em produtos derivados de cannabis e a premente necessidade de expandir a discussão e os estudos científicos para garantir que esses produtos sejam seguros e eficazes para os animais.
A Cannabis sativa é uma planta angiosperma de ciclo anual, pertencente à família Cannabaceae. Embora os termos “cânhamo” e “cannabis” sejam frequentemente usados como sinônimos, eles geralmente denotam aplicações distintas. O termo “cânhamo” costuma referir-se à planta em seu uso como vegetal, fibra têxtil, matéria-prima para construção ou na área gastronômica. Já “cannabis” é empregado quando o foco recai em sua conotação terapêutica ou psicoativa.
A cultura da cannabis medicinal atende a padrões de qualidade específicos para o uso dos produtos como medicamento. Nesse contexto, as inflorescências e folhas apicais da planta seca são utilizadas por suas propriedades terapêuticas. Nos Estados Unidos, o cânhamo é legalmente definido como qualquer parte da planta de cannabis que contenha uma quantidade de THC menor ou igual a 0,3% em base de peso seco.
O primeiro registro do uso de cannabis na medicina veterinária remonta a 1607, quando Edward Topsell observou que a mistura de sementes de cânhamo na ração de cavalos estimulava um rápido ganho de peso. No século XIX, por volta de 1800, veterinários americanos prescreviam rotineiramente medicamentos para cólicas equinas que continham altas concentrações de cannabis. Para cães, o primeiro registro é de 1843, com o médico irlandês William O’Shaughnessy, que notou o uso generalizado de cânhamo indiano para uma “multidão de aflições” e, por meio de suas pesquisas, concluiu que, em pequenas doses, o cânhamo tinha um elevado poder de estimular os órgãos digestivos, excitar o sistema cerebral e atuar sobre o sistema reprodutor.
Cannabis como produto medicinal: o sistema endocanabinoide
Comparado à vasta quantidade de estudos e informações disponíveis sobre os benefícios médicos e de saúde da cannabis em seres humanos, ainda há uma notável escassez de dados para a medicina veterinária. Embora canabinoides como o CBD possuam um potencial terapêutico promissor, as evidências científicas que apoiam seu uso em animais são atualmente limitadas, com poucos estudos bem controlados.
As áreas de interesse para derivados de cannabis na veterinária incluem dor de osteoartrite, outros tipos de dor (oncológica, neuropática), doenças alérgicas imunomediadas e inflamatórias, doenças cardiovasculares e respiratórias.
Conforme a literatura disponível, os canabinoides são majoritariamente empregados no tratamento da dor, especialmente na osteoartrite canina, que frequentemente está associada à displasia do quadril e dor lombar, sendo comum em cães de raças grandes e com predisposição.
Para além de suas aplicações medicinais, o cânhamo também pode ser um valioso componente na alimentação animal. Historicamente, a Cannabis sativa foi uma importante fonte alimentar, com suas sementes e farinhas sendo reconhecidas por seu valor nutricional. Contudo, a proibição do cultivo de todas as variedades de cannabis, no final dos anos 1930, interrompeu o desenvolvimento de seu uso como alimento para humanos e animais.
Nas últimas duas décadas, com as mudanças legislativas, o cânhamo com teor de THC inferior a 0,2% foi reconsiderado como uma cultura industrial de grande valor alimentício em alguns países. Consequentemente, sementes de cânhamo e seus produtos derivados voltaram a ser disponíveis para consumo humano e animal.
Estudos indicam que sementes de cânhamo e seus derivados podem ser incluídos na dieta de bovinos como uma boa fonte de proteína bruta e gorduras essenciais, sem comprometer o desempenho de crescimento.
Outro ponto crucial a ser questionado é a qualidade dos produtos de cannabis disponíveis no mercado. Um estudo avaliou 29 produtos que alegavam conter extratos de cannabis com baixo teor de THC 1. Os pesquisadores observaram que dois desses produtos não continham quantidades detectáveis de canabinoides, sendo, portanto, fraudulentos. Apenas dez produtos estavam dentro de 10% das concentrações totais de canabinoides informadas no rótulo, e preocupantemente, quatro produtos estavam contaminados por metais pesados, especialmente chumbo. Essa realidade sublinha a necessidade urgente de regulamentação e controle de qualidade rigorosos para proteger a saúde animal.
Aspectos regulatórios: panorama global da cannabis veterinária
A regulamentação do uso da cannabis e seus derivados na medicina veterinária varia significativamente ao redor do mundo, apresentando um cenário complexo e em constante evolução.
No Brasil, apesar do crescente interesse e do caráter promissor dos compostos de cannabis, as evidências da literatura científica para a medicina veterinária ainda são escassas. Mais pesquisas são fortemente recomendadas para aprimorar a compreensão da segurança e eficácia desses produtos. É fundamental conduzir mais ensaios clínicos controlados para que produtos seguros e eficazes possam ser devidamente disponibilizados para veterinários e pacientes.
Sobre a SBPPC
A Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica (SBPPC) é uma entidade civil de finalidade não lucrativa, idealizada e fundada em junho de 1999 por um grupo de profissionais atuantes na área de pesquisa clínica. A iniciativa surgiu a partir da ideia e determinação da profa. Greyce Lousana, bióloga e médica-veterinária, que respondeu pela presidência da instituição de 1999 a junho de 2007.
A SBPPC foi a primeira associação brasileira a se preocupar com todos os profissionais que participam direta ou indiretamente do processo de condução de pesquisa clínica com foco na saúde humana e na saúde animal. Entre seus objetivos, estão: a integração dos diferentes profissionais do setor e a divulgação do tema “pesquisa clínica” para a população leiga.
Em suas atividades diárias, a SBPPC procura manter uma constante troca de informações entre as iniciativas pública e privada, instituições de ensino e pesquisa, instâncias governamentais, pesquisadores e demais interessados no tema. Os membros da diretoria, conselho consultivo e comissões técnicas de assessoramento trabalham para promover ações de interesse de seus associados e profissionais da área.
SBPPC
Referência
1-WAKSHLAG, J. J. ; CITAL, S. ; EATON, S. J. ; PRUSSIN, R. ; HUDALLA, C. Cannabinoid, terpene, and heavy metal analysis of 29 over-the-counter commercial veterinary hemp supplements. Veterinary Medicine: Research and Reports, v. 11, p. 45-55, 2020.