Simone Meloni Bruneri
A resiliência e a disposição de seguir os sonhos em meio às necessidades de inclusividade

A médica-veterinária Simone Meloni Bruneri, que é paraplégica desde os 6 anos de idade, generosamente compartilha conosco um pouco de suas histórias, vivências, visão de mundo e impressões.
Revista Clínica Veterinária (CV) – O que a levou a ser médica-veterinária?
Simone Meloni Bruneri (SB) – Desde pequena nunca pensava em ter outra profissão. Quando me perguntavam: O que você quer ser quando crescer? A resposta sempre foi: médica de bicho, quero cuidar de gato e cachorro.
CV – O que aconteceu com você para que ficasse paraplégica?
SB – Aos 6 anos eu sofri um atropelamento que ocasionou uma lesão medular e traumatismo craniano. Apesar disso, eu jamais decidi parar de estudar e sempre insisti em buscar os meus objetivos. Eu estava no primeiro ano do ensino fundamental e nunca perdi o vínculo com a escola mesmo internada, meus amiguinhos e professores mandavam sempre alguma coisa que certa forma me estimulasse a lutar, e estavam comigo de alguma forma e isso foi de extrema importância.
CV – Como foi a volta para casa e escola?
SB – Minha família foi sábia demais, realmente inspirados pois eu passei por tudo o que aconteceu de forma leve, sem constrangimentos e sim com foco. As adaptações foram acontecendo com o tempo e diante de tudo que ocorria. Como eu não tinha controle de tronco nenhum, por alguns meses tive uma professora que me repassava tudo para que eu não ficasse atrasada em relação aos meus coleguinhas de classe. Quando retornei presencialmente à escola, isso foi leve e, ao mesmo tempo, forte e intenso, porque tudo o que antes eu fazia, a partir daquele momento passou a ser diferente, eu precisava me reinventar, e assim foi acontecendo diariamente naquela fase e continua acontecendo até os dias de hoje.
CV – Houve alguma dificuldade nesse período escolar que marcou você de forma mais significativa?
SB – Sim. Eu estudei dos 2 até os 14 anos na mesma escola, onde cresci e me reinventei de todas as formas, para poder cumprir sempre com minhas obrigações escolares, até porque todo ano acontecia alguma intercorrência na minha saúde e eu precisava me ausentar. Naquele momento desenvolvi amizades que levo até hoje (sim, eu tenho uma amiga do maternal até hoje, a Gabriela) que foram importantíssimas em cada fase, enfim, em tudo o que acontece com qualquer criança nesse período escolar. Porém, no último semestre do 9º ano do ensino fundamental, a diretora me abordou na hora do recreio e simplesmente me informou que a partir do ano seguinte eu não poderia continuar na escola pois, apesar da reforma e expansão para o ensino médio que já haviam planejado realizar, a acessibilidade não seria realizada. Assim, eu e um outro colega que tinha distrofia muscular tivemos que sair. Não foi uma situação fácil de vivenciar. Estávamos no ano de 1993 e a lei de acessibilidade não existia. Tudo era muito informal e dependia da boa vontade de cada estabelecimento em promover ou não acessibilidade.
(https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.html)
CV – Foi fácil encontrar uma escola com acessibilidade?
SB – Não, foi bem complexo, mas tive a sorte de que uma de minhas tias fazia parte havia muitos anos de uma DRE (diretoria regional de ensino) e nos indicou um colégio sensacional em todos os aspectos, o Colégio Pré-Médico, pelo qual só tenho gratidão.
CV – Como foi essa transição escolar?
SB – Ao mesmo tempo em que foi leve, pelo apoio da minha família, foi tenso, pois estava saindo realmente ao mundo, que até então havia sido a minha escola. Ao chegar à nova escola, lembro do meu coração acelerado diante do que seria minha rotina nos próximos anos. Aos poucos fui me adaptando, enturmando e aprendendo, até que me formei.
CV – Você tem algum animal de estimação? Como eles surgiram na sua vida?
SB – Sim, eu tenho 3 gatos todos srd, a Madonna, o Félix e a Marie. Porém, antes do meu atropelamento não havia tido nenhum animal. Após o ocorrido, meus pais decidiram comprar uma gata siamesa, a Xuxa, que se tornou responsável pela minha paixão por essa espécie tão peculiar, e desde então, nunca mais deixei de ter gatos em casa. A espécie felina me fisgou, porém os cães também têm seu lugar no meu coração.
CV – Como era levar sua gatinha ao veterinário?
SB – Infelizmente não era. Minha saudosa mãe sempre manteve todos os cuidados necessários, mas dificilmente eu conseguia acompanhá-la, devido à falta de acessibilidade nas clínicas veterinárias.
CV – Como sentia e lidava com essa situação, uma vez que você era uma criança?
SB – Não era algo que eu via com bons olhos, não me deixava feliz, até porque muitas das minhas colegas iam com seus pais às consultas de médico-veterinário com seus pets, porém essa dificuldade nunca me fez desistir da carreira. Hoje vejo que isso me impulsionou ainda mais a mudar esse contexto, que infelizmente ainda ocorre nos dias de hoje.
CV – Conforme cresceu, você chegou a pensar em outra profissão?
SB – Nunca. Até achava superestranho meus colegas fazerem aqueles testes para descobrir a profissão que mais se encaixava com o perfil deles. Para mim era claro, não tinha segunda opção, o que por um lado não me permitia abrir o leque para novas escolhas.
CV – E como foram os desafios para estudar e chegar até a faculdade?
SB – Ah, foram muitos. Décadas atrás não existia lei de acessibilidade, as pessoas com deficiências (PCDs) viviam realmente em uma “terra de ninguém”. Tivemos a criação do Estatuto da pessoa com deficiência apenas em julho de 2015, portanto acessibilidade era praticamente ausente nas escolas e a maioria das pessoas com deficiência acabava sendo excluída da sociedade. Por exemplo, em toda minha vida escolar eu tive apenas um colega com deficiência. Hoje é um pouco menos incomum, porém muito longe do ideal, visto que temos 14,4 milhões de pessoas com deficiências, o que representa 7,2% de toda a população do Brasil.
CV – E na faculdade, como foi a questão de acessibilidade e da visibilidade da turma?
SB – A acessibilidade foi algo bem complexo, pois no ato da matrícula a informação era que havia acessibilidade, porém passei um ano subindo 3 lances de escada, pois havia o espaço reservado para o elevador, mas ele não estava instalado. Contudo, os seguranças da faculdade, meus colegas de turma, e até mesmo colegas que se graduavam para outras profissões no mesmo campus me ajudavam diariamente, para que eu pudesse cumprir minhas obrigações, como todos os demais alunos.
CV – E como ficou essa situação do elevador, uma vez que você ou quem a ajudava poderia se machucar?
SB – No último dia do primeiro ano tive uma conversa franca com o diretor do campus e no ano seguinte o elevador estava lá, pronto a ser usado por mim e todos aqueles que de alguma forma precisassem do mesmo.
CV – Por favor, explique como se dava sua participação nas aulas práticas, como as de clínica de pequenos e de grandes animais?
SB – Essa história até me aquece o coração quando lembro dela. Em meados do segundo ano fui conversar com o coordenador do curso a respeito de como poderíamos viabilizar as minhas atividades nos anos seguintes, pois sabia que essa era uma situação que gerava dúvida em muita gente, por ser algo novo. Eu pertenci à terceira turma da UniFMU, então a entidade estava ainda realizando ajustes. Contudo, acredito que ter uma aluna cadeirante não havia sido considerado no processo de criação do curso. Em função disso, conversei com o coordenador da época e apresentei uma cadeira de rodas ortostática que me permitiria ficar em pé quando necessário, além de possuir rodas diferenciadas para a movimentação em terrenos acidentados, como nas fazendas de grandes animais. Para minha alegria eles estudaram o caso e a compraram quando eu iniciei o 3º ano da faculdade. Creio que foi um aprendizado importante para todo mundo e sou muito grata à UniFMU por tudo que me proporcionaram.
CV – Como você conseguiu descobrir algo que se encaixasse tão bem às suas necessidades?
SB – Cada pessoa com deficiência tem necessidades únicas, claro que temos muitas em comum, porém no decorrer do tempo passamos a nos conhecer e também a conhecer melhor o mercado e as facilidades para melhorar nosso cotidiano, então contei com a ajuda de profissionais maravilhosos, que cuidam de mim até hoje e a quem quero agradecer. Adriano Amaral, meu fisioterapeuta e Luis Botelho, meu médico, me apresentaram essa cadeira, uma vez que, em meados dos anos 2000, o acesso à internet e à informação era muito mais difícil do que é hoje.
CV – Como foi sua adaptação a essa cadeira de rodas?
SB – Como eu tive ajuda da equipe médica, consegui algo que realmente fosse adequado às minhas necessidades, que são peculiares quando comparadas, por exemplo, a implantar banheiros e rampas, pois para isso há regras padronizadas para atender a todos os tipos de deficiência, presentes na ABNT e facilmente encontradas. (https://abnt.org.br/)
CV – Como foi a realização dos estágios obrigatórios? Como foi selecionar e exercer todas as funções como os demais?
SB – Foi mais um desafio que cumpri muito bem, assim como procuro realizar todas as minhas atividades. Eu utilizei a cadeira de rodas ortostática para que pudesse manejar os pacientes, assistir e participar de cirurgias, pois nesses procedimentos, o manter-se em pé facilita muito.
CV – Teve alguma situação engraçada ou algo que de alguma forma ficou marcado no período da faculdade?
SB – No meu primeiro atendimento clínico no hospital veterinário, eu estava acompanhada pelas minhas amigas Débora Sartori e Ana Carolina Gianini (somos amigas até hoje). Um cachorro da raça labrador veio para consulta com dor abdominal. Nós fizemos a anamnese e de repente BUMMM, um estrondo horroroso aconteceu e todo mundo saiu correndo assustado pelo barulho. Eu estava em pé naquele momento e a cadeira ficou inclinada para um lado sem que eu conseguisse me mexer. O pneu da cadeira havia estourado o que desencadeou o susto de todos que estavam no hospital veterinário. Minhas amigas correram, mas tive a calma de perceber e dizer a elas que achava que era alguma situação com a cadeira. Constatamos que era o pneu e caímos na gargalhada. Definitivamente ficou marcado.
CV – E o mercado de trabalho? Quais foram seus desafios para entrar no mercado?
SB – Essa questão eu diria que está em processo, pois mesmo formada há quase 21 anos, não me sinto aceita e respeitada enquanto pessoa ou como profissional em todos os campos da medicina veterinária. A pessoa com deficiência ainda é considerada um E.T. pela maioria das pessoas, que nos colocam num local de “coitadinha” ou “que exemplo você é”. Porém e ainda assim, pessoas com deficiência ainda não são aceitas e respeitadas na maior parte das indústrias, empresas, clínicas, pet shops e demais repartições que compreendem o mercado veterinário.
CV – Na sua opinião, por que ainda em pleno século 21, de tanta tecnologia e informação, não existe esse espaço para pessoas com deficiência?
SB – Falta de informação e empatia. Vivemos num mundo em que todos estão no automático e olhar para a dor do outro não está no “planejamento do dia”, no qual o foco é lucrar sempre. A pessoa com deficiência ainda é vista como aquela pessoa incapaz, fadada a ficar em casa e viver de aposentadoria por invalidez. Porém, a realidade é outra: cerca de 40% da população PCD pertence às classes A e B e, em sua maioria, constitui uma faixa etária produtiva, mas pela falta de oportunidade, inclusive que seja compatível com sua capacitação, acaba sendo perdida pelo mercado.
CV – Como foi sua trajetória profissional até aqui?
SB – No início, trabalhei em alguns hospitais e clínicas veterinárias, fiz plantões, porém a falta de acessibilidade acabou me desanimando, pois embora todos com quem convivi estivessem aptos a ajudar, com o tempo eu acabava sendo vista como um fardo, sabe? Muitas pessoas interpretaram equivocadamente, mas naquela fase eu optei por fazer apenas atendimentos domiciliares. Nos últimos anos, passei a atender como volante em algumas clínicas nas áreas de nutrição e neurologia, áreas que me interessaram muito. Em paralelo, desenvolvo o trabalho de gestão em comunidades veterinárias, esclarecendo dúvidas relacionadas principalmente à nutrição e à neurologia de cães e gatos, e gostaria de dar créditos ao Ronald Glanzmann, sócio-proprietário da Inovet, que confiou a mim essa tarefa há cerca de 3 anos, tarefa essa que tem dado frutos e conexões maravilhosas como o apoio que tenho oferecido no software de nutrição do professor Luís Fernando de Moraes. Também desenvolvo um trabalho de parceria com a empresa Adimax, buscando parceiros e apresentando a visão da empresa baseada em acessibilidade.
CV – Você ganhou um prêmio de destaque da Vetsmart. Pode nos contar detalhes, por favor?
SB – Sim, essa foi uma seleção realizada pelo app Vetsmart em 2020, que selecionou veterinários que se destacaram na medicina veterinária, trazendo um incentivo à classe. Dentre vários colegas, três foram selecionados, e eu, por votação pública, ganhei o prêmio em um evento realizado pelo app, que contou com a presença de inúmeros nomes da medicina veterinária de pequenos animais.
CV –Você busca atualização em cursos e congressos? Como é a acessibilidade nesses locais?
SB – Por lei era para ser impecável, até porque a lei de acessibilidade deve ser cumprida em todos os estabelecimentos. Porém, em função da falta de fiscalização, há muitos eventos totalmente despreparados em todos os aspectos, seja com relação a banheiros acessíveis que, mesmo quando presentes, nem sempre cumprem as regras da ABNT, até situações inusitadas de “invenções” estéticas, com salas no mezanino, introduzidas com a intenção de dar um toque de luxo. Não posso esquecer dos estandes, que geralmente são um horror, todos com degrau, e a maioria não possui rampa de acesso, e quando possuem são muitas vezes desastrosas, e não são sinalizadas com uma fita amarela de CUIDADO, a fim de evitar acidentes.
CV – Nesses eventos já aconteceu alguma situação que possa compartilhar conosco?
SB – Aconteceram algumas. Participei pela empresa Inovet de uma grande feira do mercado pet e nas negociações foi explicado e solicitado por diversas vezes à equipe de montagem que cuidasse da acessibilidade no local, em função da participação pela empresa de uma pessoa com necessidades específicas de acessibilidade. Inacreditavelmente, montaram o estande sem rampa e, ainda por cima, com um degrau considerável. Naquela manhã chamamos todas as pessoas possíveis para que arrumassem o estande, mas passaram-se horas e nada. Antes de sair para almoçar eu disse a um dos organizadores que se no meu retorno não tivessem solucionado aquele problema, eu tomaria as devidas providências. Quando voltei já tinham colocado a devida rampa. Isso chateia, e em eventos recentes cheguei a ouvir de organizadores que o degrau é regra estética. Não encontro palavras para descrever esse absurdo, pois infringe as regras de acessibilidade como um todo e por isso deixo aqui o meu recado as empresas, para que tirem esses degraus, pois graves acidentes podem acontecer por conta desse mínimo detalhe. Não sei de onde tiraram essa ideia, porém se mais empresas exigirem rampas em seus estandes, seguramente contribuirão com muitas pessoas e evitarão acidentes.
CV – Como você vê a evolução ao longo dos anos com relação à acessibilidade, principalmente no mercado veterinário?
SB – Tivemos muita melhora e conscientização, porém, ainda está muito aquém do mínimo, sobretudo se tomarmos por base a lei de acessibilidade, que é federal e deve ser cumprida em todo território brasileiro, para que as pessoas com deficiência possam exercer seu direito de ir vir. Algumas clínicas e hospitais têm atentado para essa necessidade, até porque não são apenas os cadeirantes, mas pessoas com outras deficiências e que possuem cães guia ou outras formas de assistência precisam ir ao médico-veterinário. Temos que atentar para esse nicho, que só tende a crescer e que será extremamente fiel e grato àqueles que prestarem serviços fornecendo acessibilidade.
CV – Como você enxerga o nicho das empresas e indústrias do mercado veterinário em relação às demais questões de acessibilidade?
SB – Os esforços nesse sentindo são praticamente inexistentes, destacando apenas e com louvor a indústria Adimax, que proporciona vagas sem distinção. Lá, todas as vagas podem ser preenchidas por pessoas com deficiência. As demais, inclusive aquelas em que já busquei processos seletivos não possuem essa categoria para veterinários, e apenas cumprem cotas em cargos de base. Não vejo a hora em que esse panorama se altere.
CV – E a acessibilidade nos produtos destinados a pets?
SB – Que eu saiba, a única linha no Brasil que apresenta informação na embalagem em braile é a Fórmula Natural. Desconheço qualquer marca que tenha esse recurso até porque não é especificado em lei, e ainda de forma muito subjetiva, ficando a cargo da empresa demonstrar ou não acessibilidade em seus produtos. Já na linha de medicamentos e suplementos, a Avert passou a também apresentar instruções em braile nas embalagens dos seus produtos.
CV – Apesar de ainda haver muitos pontos importantes para se analisar no tema, qual mensagem você gostaria de compartilhar com os colegas para fechar esta conversa?
SB – Abram a mente, tenham empatia, busquem informações em fontes fidedignas, como as que estamos apresentando nesta entrevista. Lembre-se que nós decidimos como será nosso aprendizado e trajetória, que podem ser leves ou pesados, pois dependem da nossa reação diante dos fatos. O diferente pode ser estranho e até difícil no início, porém aplicar a inclusão em nossa vida é engrandecedor em todos os aspectos, além de nos permitir olhar o mundo a partir o olhar do outro. E me coloco à disposição de todos para somar neste mundo.