Vínculos afetivos com animais de estimação – formações e rupturas a partir de uma abordagem psicanalítica

O processo de domesticação das espécies animais
Historicamente, o processo de domesticação das espécies animais pelo homem teve início há cerca de 14.000 anos na região conhecida como Crescente Fértil. Trata-se de uma região do Oriente Médio que corresponde hoje às planícies da Mesopotâmia, às regiões montanhosas da Turquia e da costa mediterrânea que, diferentemente da configuração atual, constituía uma área coberta por gramíneas e leguminosas. Também possuía uma fauna e uma flora abundantes, que eram a principal fonte nutricional tanto para as espécies de pastoreio que habitavam a região como para o homem primitivo, que vivia da prática da caça e da coleta de alimentos 1.
A Revolução Neolítica, ou Revolução Agrícola, ocorrida há cerca de 12.000 anos, marcou a transição do homem nômade caçador para o homem sedentário, quando tiveram início os assentamentos urbanos, a prática do cultivo de lavouras e o confinamento das espécies animais com objetivos alimentares. Foi assim que o homem começou a selecionar artificialmente as espécies animais que era de seu interesse domesticar, como, por exemplo, as que toleravam a proximidade das pessoas 2.
Acredita-se que a domesticação de cães e gatos para fins puramente afetivos tenha ocorrido gradualmente ao longo dos anos. Pesquisadores dedicados ao assunto confirmam que o sucesso da domesticação não resultou apenas da evolução biológica das espécies, mas também da influência cultural nas sociedades primitivas 2. Um dos exemplos disso são os achados arqueológicos de três esqueletos de canídeos no norte de Israel, local onde há cerca de 11.000 a 13.000 anos foi registrada uma comunidade conhecida como Natufiana. Um dos esqueletos encontrados era o de um filhote de cão (ou de lobo) que havia sido enterrado juntamente com um homem, provavelmente seu dono. A disposição dos restos mortais de ambos sugeriu aos pesquisadores uma relação possivelmente afetiva entre eles 3.
Domesticação dos cães
Os lobos foram seguramente uma das primeiras espécies domesticadas pelo homem. Estudos moleculares utilizando material proveniente de sítios arqueológicos de cerca de 14mil anos 1,4 em regiões do Oriente Médio e em sítios entre a Europa e o Extremo Oriente confirmaram ser o lobo (Canis lupus) o antecessor do cão 2.
Num primeiro momento o contato entre homens e cães primitivos se deu pela proximidade durante as caçadas, quando o homem ainda era nômade. Os canídeos, pela habilidade natural de vasculhar o ambiente, acompanhavam o homem caçador pelos campos à procura de restos de caça como alimento. Assim, ao longo de gerações sucessivas, ficaram mais habituados com a presença e o contato humanos, envolvendo-se nas atividades de caça e assumindo a função de sentinelas e guardas contra invasões aos assentamentos durante a noite 5,6. Dessa forma, tanto a seleção genética gradual dos lobos como a ação do homem na escolha de animais com características mais sociáveis propiciaram que os lobos primitivos evoluíssem para o cão moderno 7.
Domesticação dos gatos
Evidências arqueológicas apontam a presença de gatos em Creta há 9.500 anos 8, e, em Jericó, há 9.000 anos 9; pinturas de tumbas registram a presença do gato domesticado há cerca de 3.600 anos no Egito.
Em relação aos cães a domesticação dos gatos evolui numa trajetória diferente. Os gatos selvagens não eram bons candidatos à domesticação, pois, como todos os felinos selvagens, eram obrigatoriamente carnívoros, com limitações à adaptação a qualquer outro tipo de dieta que não fosse essencialmente proteica, bem como pelo fato de serem animais solitários e grandes defensores de seus territórios quando comparados aos lobos e cães gregários 10.
Acredita-se que tenham sido poucos os motivos para que as comunidades agrícolas primitivas selecionassem intencionalmente gatos selvagens como animais de companhia. A hipótese mais provável é que os gatos selvagens que exploravam o ambiente humano, ao serem aceitos e tolerados pelas pessoas, foram se tornando mais sociáveis do que seus parentes selvagens, assumindo, assim, a condição de animais de estimação 11,12.
Dessa forma, entende-se que, enquanto a domesticação dos cães foi orientada pela seleção artificial conduzida pelo homem, o atual gato doméstico é um produto da seleção natural. Estudos genéticos confirmam que o gato doméstico é resultado de seis subespécies de gatos selvagens, e que o gato doméstico moderno é filogeneticamente muito próximo de seu parente selvagem Felis silvestris lybica 13.
A busca da companhia de animais de estimação
Muitos são os motivos alegados por nós quando procuramos a companhia de animais como espécies de estimação: identificação, divertimento, exibicionismo, ter “alguém” como companhia, ter “alguém” como objeto de cuidados, dentre outros. Em quaisquer dessas intenções fica clara a pró-atividade humana em direcionar e investir a atenção.
O vínculo afetivo formado entre o homem e o animal ganha significado e é fortalecido com o convívio e com o avanço da intimidade entre os animais e seus donos 14. Muitas vezes, durante as consultas veterinárias, ouvem-se relatos de como o tempo de convívio pode transformar a relação entre as partes, como no exemplo abaixo:
O Tobby chegou em casa contra minha vontade, eu não gostava de cachorro, foi um presente que alguém deu ao meu filho. Eu somente comecei a ter interesse por cães (na verdade pelo Tobby) com o tempo, quando passamos a conviver em família….hoje o Tobby me “entende”, sabe quando estou triste ou alegre, …. ele sabe tudo!
É fato que a forma como nos relacionamos com nossos animais de estimação tem adquirido uma importância cada vez maior em nossa cultura. Isso nos leva a pensar o quanto, em tempos de instabilidade afetiva dos laços conjugais, familiares, profissionais e entre amigos (reais ou virtuais), nos parece mais fácil sustentar vínculos com menos exigências e condições do que as impostas pela sociedade e pela família. Corroborando essa hipótese, uma pesquisa realizada pelo IBGE em 2013 confirmou que o número de famílias que possuem cães no Brasil já é maior do que o de famílias que têm filhos: de cada cem famílias no país, 44 criam cães, enquanto somente 36 têm crianças 15.
A “revolução cultural” ocorrida cerca de meio século depois da publicação dos textos de Sigmund Freud sobre o ideal materno como destino (1908) e sobre a virgindade (1918) – concomitante ao advento da pílula como método anticoncepcional – modificou fundamentalmente a família tradicional e permitiu que a mulher, e também o homem, conquistasse o direito essencial de atribuir à vida sexual outra finalidade além da reprodução 16.
Ao longo da segunda metade do século XX, a liberdade de escolher ter ou não ter filhos impregnou a sociedade de valores individuais e hedonistas 16. A realização pessoal ganhou importância máxima, e se preparar para ter filhos passou a ser uma das decisões mais importantes na vida de qualquer indivíduo.
No entanto, as mulheres que têm autonomia para aceitar ou renunciar à família ou à maternidade também são livres para questionar seus desejos de exercer a maternidade ou, ainda, deslocar tais realizações pulsionais para outros objetos, como, por exemplo, os animais de estimação.
O animal de estimação de hoje é um novo elemento agregado à família humana, seja substituindo um dos membros da família tradicional ou se configurando como algo realmente novo. A opção pelos animais de estimação em substituição aos filhos pode ser vista como uma responsabilidade menor de educar e cuidar, uma dedicação menor de tempo, um impacto financeiro menor ou, ainda, como a expectativa de ter um companheiro que é “a eterna criança” que promove a “leveza” no dia-a-dia na família. É o caso da família Canteras (Figura 1), onde as golden retrievers Cléo e Glória também são consideradas membros da família e têm direito, inclusive, a sobrenome. Para casais homossexuais, a opção pelos animais de estimação também pode ser uma forma de exercer o cuidado que simule ou sublime o cuidado parental.
Embora muito se fale sobre o exagero de alguns donos quanto ao amor e cuidados destinados a seus animais de companhia como sinônimo da atenção destinada aos filhos, na opinião do professor Mauro Lantzman, médico-veterinário e psicólogo da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), os vínculos são diferentes. Lantzman defende a ideia de que os donos descrevem seus animais de estimação como se fossem filhos porque não encontram outra forma de defini-lo. Considerando que os animais de estimação são seres dependentes de nós, é natural que o ser humano interaja com eles como se eles fossem crianças com pouca ou nenhuma autonomia. Lantzman frisa ainda que a impressão que passamos por tratar nossos companheiros animais como gente talvez seja porque essa é a forma que sabemos lidar com qualquer outro ser vivo 17.
Influências econômicas do mercado de animais de estimação
O crescimento expressivo do mercado de animais de estimação nos últimos anos, associado à influência publicitária na veiculação dos diversos benefícios e vantagens de se ter um animal para cuidar, faz desse setor um dos mais promissores no Brasil.
Segundo dados da Comissão de Animais de Companhia (Comac) do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal (Sindan), o mercado de animais de estimação brasileiro cresceu cerca de 11% em 2015.
Existem atualmente 52 milhões de cães nos lares brasileiros, contra 45 milhões de crianças de até 14 anos; a situação brasileira se assemelha à de países como o Japão (16 milhões de crianças para 22 milhões de animais de estimação) e Estados Unidos (48 milhões de cães para 38 milhões de crianças) 15. Segundo as autoras, o motivo do aumento de cães em relação às crianças é que os animais de estimação são frequentemente a alternativa escolhida para preencher o vazio nos lares com pouca gente. O aumento da população idosa em cujos lares os filhos não mais habitam e a decisão da mulher de ter menos filhos, e mais tardiamente, contribuem para o aumento dos lares aptos a receber cães: “Ninho e berço vazios reunidos, sobram espaço, tempo e dinheiro para os bebês de quatro patas”. A tutora Vera Ragazzo, que tem desfrutado da companhia do pinscher Pop há 15 anos, afirma: “Ele é a alegria da casa!” (Figura 2).
Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet), a população de animais de companhia no Brasil hoje é a segunda do mundo em quantidade de cães, gatos e aves ornamentais; a terceira do mundo em faturamento e a quarta em população de animais como um todo. Dados como esses colocam o Brasil numa posição de destaque nesse cenário competitivo, além de poder influenciar importantes mudanças sociais e culturais nas relações homem-animal.
A resposta animal ao afeto humano
A sensação prazerosa da retribuição animal ao afeto humano é capaz de produzir em nós um tipo de encantamento que, uma vez experimentado, provoca a vontade de repetir a sensação de bem-estar. A intimidade criada pelo convívio da companhia animal fortalece o prazer de interagir, como se vê na relação harmoniosa entre Cléo e a tutora Gyzele (Figura 3).
Talvez seja esse o motivo pelo qual o homem estime um animal de forma tão comprometida a ponto de direcionar a ele sua libido. Partindo do pressuposto de que a satisfação humana é inerente ao campo pulsional e amoroso, entende-se que a escolha de um objeto de amor como, por exemplo, um animal de estimação, esteja baseada em experiências anteriores ou primitivas (conscientes ou não) que foram sentidas como prazerosas ou recompensadoras. Porém, uma vez que a resposta animal à atuação pulsional humana é instintiva, o vínculo construído entre ambos é assimétrico.
A pulsão humana pode ser entendida como a energia que mobiliza a libido na busca de satisfação. Dessa forma, ela se relaciona com nossos registros inconscientes decorrentes de acontecimentos já vivenciados e inscritos em nosso aparelho psíquico, no qual a relação com os outros e as experiências de vida têm um papel decisivo. Ao passo que o instinto animal conduz a um comportamento e saber característicos da espécie à qual pertence, geneticamente herdados e que variam muito pouco entre os indivíduos.
Sigmund Freud conceitua a dinâmica da pulsão 18 como um estímulo constantemente gerado a partir de uma fonte ou origem somática. Assim, a pulsão é direcionada a objetos que se apresentam como fontes de prazer, ou ainda, a objetos que, por meio dos quais, algum grau de satisfação possa ser alcançado.
O objeto da pulsão é o elemento mais variável dessa configuração somato-psíquica. Ele se apresenta como um objeto específico por sua capacidade de propiciar satisfação; porém, por não estar originalmente vinculado à pulsão, pode ser substituído por qualquer outro objeto de desejo, um indicador de como o prazer humano pode ser variável, na medida em que não está pré-fixado instintivamente.
Os animais de estimação se prestam muito bem como objetos de amor de alguns tutores, pois estes se sentem retribuídos à altura do investimento pulsional ofertado; exemplos simples disso são as sensações de prazer relatadas na interação com animais como, acariciar (pulsão táctil), alimentar (pulsão oral) e admirar sua beleza ou seu comportamento (pulsão escópica). O prazer narcísico também pode ser revelado em tutores que afirmam se identificarem com traços comuns de comportamento de seus respectivos animais de estimação.
No texto “Introdução ao narcisismo” 19, Freud afirma que a pessoa apaixonada supervaloriza seu objeto de amor ao mesmo tempo em que diminui o autoinvestimento amoroso, confirmando que o encantamento e a valorização estética e cultural de um objeto que se destaca exerce grande atração em todos:
…a atração de um bebê se deve em boa parte ao seu narcisismo, sua autossuficiência e inacessibilidade, assim como a atração de alguns bichos que parecem não se importar conosco, como os gatos e os grandes animais de rapina; e, mesmo os grandes criminosos e o humorista conquistam o nosso interesse, na representação literária, pela coerência narcísica com que mantêm afastados de seu Eu tudo o que possa diminuí-lo. É como se os invejássemos pela conservação de um estado psíquico bem-aventurado, uma posição libidinal inatacável, que desde então nós mesmos abandonamos. (Freud, 1914/2010, p. 34)
Velhice e doença dos animais de estimação
É notório que o crescente aumento na longevidade dos animais de estimação é resultado da maior atenção e responsabilidade do ser humano nos cuidados de seus animais de estimação, como também da evolução da medicina veterinária como ciência. Sendo assim, parte da vida de um cão ou de um gato cujos donos são cuidadosos pode ser entendida como artificial ou construída, pela oportunidade que este teve de usufruir de melhores condições de sobrevivência 20.
Nesse contexto, a atuação do veterinário – mesmo que temporária e, especialmente, em doenças crônicas ou incuráveis – contribui para o prolongamento do vínculo entre os pacientes e seus tutores.
Nos últimos anos temos assistido ao incremento tecnológico e de infra-estrutura de clínicas e hospitais veterinários, além da capacitação dos veterinários especialistas que hoje ingressam no mercado de trabalho. Consideramos esse movimento como uma evolução que propiciou muitas das conquistas no cuidado a pacientes criticamente doentes e que, consequentemente, permitiu a recuperação de animais que antes eram destinados à eutanásia ou à morte natural.
Porém, a despeito do ganho de vida, em alguns momentos somos levados a refletir sobre o real benefício de se manter pacientes vivos artificialmente. Observar um animal num leito de um serviço de terapia intensiva sem condições de interagir ou de se comunicar, que é alimentado por meio de sondas e respira artificialmente por meio de aparelhos é uma experiência angustiante, pois em nada remete à plenitude da vida animal. Essas experiências nos permitem questionar o mérito de retardar a morte à custa de condições de sobrevivência impensáveis no passado, como na reflexão abaixo:
E o doente assim mantido numa sobrevivência comatosa não tem semelhança nenhuma com o moribundo típico de outrora, aquele para quem se organizavam os ritos de passagem e que deles participava para desempenhar seu papel…. A importância desses ritos explica o terror com que se considerava o risco de morte súbita. Objeto dos temores de outrora, a morte súbita converteu-se no desejo de quase todo mundo 21. (p. 193)
Morte, eutanásia e a escuta relacionada à perda
O veterinário é um profissional com experiência única no que se refere à eutanásia, uma vez que o procedimento é lícito em animais. A ele é permitido discutir livremente o tema e refletir sobre o direito à morte sem sofrimento entre sua equipe, entre os tutores ou mesmo com a comunidade. Porém, ao mesmo tempo em que existe maior liberdade de se pensar sobre a morte, estudos sugerem que, em relação a outros profissionais, os veterinários são mais predispostos a alterações de humor, depressão e suicídio 22.
Decididamente, a opção ou sugestão de eutanásia para um paciente encerra uma grande frustração para todos os envolvidos; é nesse momento particularmente difícil que a possibilidade de uma escuta psicanalítica que legitime a dor e a frustração da perda pode ser útil na elaboração do luto, tanto para tutores como para veterinários.
Segundo Freud, em seu texto “Luto e melancolia” 23, luto é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como a privação de alguém ou algo que era presente e passa a ser inacessível.
O estado de ânimo do luto não é tido como patológico; espera-se que a experiência dolorosa seja superada depois de algum tempo. Porém, sob as mesmas influências, observa-se em alguns que no lugar do luto se instala um estado melancólico ou depressivo, normalmente em indivíduos com predisposição patológica. Tanto o luto como a melancolia, seja pela perda de pessoas ou de animais de estimação são processados da mesma forma por nosso psiquismo.
O tempo necessário para a superação do luto varia de indivíduo para indivíduo, e não é recomendável a tentativa de encurtá-lo, amenizá-lo ou perturbá-lo. A elaboração se inicia pela constatação de que o objeto amado já não existe mais (princípio de realidade), o que leva à retirada gradativa da libido do objeto perdido. Com o tempo, a falta e as lembranças do objeto vão se atenuando e o indivíduo supera sua perda; a partir de então, torna-se livre para investir sua libido em outro objeto.
É muito frequente nos depararmos com situações em que responsáveis em estado de luto são presenteados com outros animais, muitas vezes quase que imediatamente à morte do antecessor, na intenção de amenizar a dor e a ausência do outro. Mesmo que nas melhores das intenções, “colocar um novo animal no lugar do outro” pode sugerir que aqueles que amamos possam ser substituídos ou que uma experiência afetiva possa ser facilmente reproduzida. Além disso, a percepção de que o novo parceiro não é “igual ao outro” pode reforçar os sentimentos de tristeza, depressão e, inclusive, culpa, principalmente quando o tutor, ainda de luto, se vê na necessidade de acolher e amar um novo animal, o que pode levar à sensação de incapacidade de amar novamente 24.
O sentimento de culpa é frequente no relato de responsáveis por animais doentes que falecem sob seus cuidados, e não é raro que estes associem a causa da morte à falta de cuidados ou a sua inabilidade. É o caso, por exemplo, de uma senhora responsável por um cãozinho bastante idoso, que havia morrido em decorrência de insuficiência cardíaca. Após alguns dias da morte do animal, a responsável, muito abalada, insistiu em passar em consulta veterinária à procura de respostas ou confirmação àquilo que ela afirmava ter sido culpa dela. A proprietária insistia em contar que o animal estava recebendo medicações prescritas por um cardiologista, mas que a medicação havia acabado; e que, para comprá-la, era necessário o agendamento de uma nova consulta. Porém, não deu tempo, o paciente sentiu-se mal e acabou falecendo em decorrência de um edema pulmonar, antes da consulta agendada. Ela, inconsolável, dizia à veterinária:
Doutora, ele morreu e foi culpa minha!… eu não comprei o remédio que ele precisava tomar!
O estado melancólico que pode advir do luto pela perda de um animal é considerado patológico e pode levar a estados mórbidos. Diferente do luto, a melancolia tem como característica a diminuição do sentimento de autoestima, como descrito por Freud:
A melancolia é caracterizada por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda a atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição. (Freud, 1917/2011, p. 47)
A melancolia pode aparecer quando a ligação da libido a uma pessoa ou objeto é abalada pela influência de uma decepção ou ofensa real. O normal seria que a libido fosse redirecionada e investida em outro objeto de amor, mas isso não acontece; a libido fica livre e não encontra outra forma de fixação; esta, então, se direciona para o Eu (ou Ego) e o identifica como objeto perdido.
Assim, para o melancólico, a perda do objeto acaba também se transformando na perda do Eu, que, uma vez modificado pela identificação, torna-se extremamente autocrítico. O melancólico se mostra empobrecido pelo rebaixamento do seu sentimento de autoestima. Enquanto no luto é o mundo que parece pobre e vazio, na melancolia esse sentimento de desprezo é direcionado ao Eu; numa constatação de desagrado moral consigo mesmo, que se põe acima de qualquer outro defeito que o indivíduo possa ter.
O estado depressivo, comum à melancolia, que se segue após a perda de um companheiro animal pode ficar mais profundamente marcado em situações em que o tutor do animal doente deposita grande expectativa na cura do seu companheiro ou, ainda, quando o tutor é espectador da degradação física que a doença produz, a despeito de todos os seus esforços em tratá-lo. Situações como essas são muito bem exemplificadas pelos casos de câncer; não raras vezes os tutores de pacientes oncológicos confirmam que se sentem infelizes porque seus companheiros “não mereciam ter uma doença tão séria como essa que, além de tudo, exige tratamento muito debilitante e, ainda assim, é necessário ficar alerta porque a doença pode voltar e se disseminar”.
Considerações finais
A importância do lugar dos animais de estimação nas famílias de hoje merece uma melhor compreensão acerca das causas psíquicas que regem as relações entre os tutores e seus animais. Nesse sentido, a iminência da perda de um companheiro animal querido, seja por motivo de doença ou senilidade, pode ser vivenciada como um estado mórbido.
Acreditamos que a abordagem psicanalítica se apresenta como uma prática nova e transdisciplinar no auxílio do enfrentamento e na elaboração da perda de tutores em sofrimento pela morte de seus animais de estimação.
Agradecimentos
Agradeço à psicóloga Julieta Jerusalinsky, professora da COGEAE-PUC (São Paulo), pela orientação de minha monografia de conclusão do curso de Especialização em Teoria Psicanalítica, a partir da qual me baseei para a redação deste artigo.
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