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Bem-estar animal

Breve histórico da experimentação animal e do desenvolvimento dos métodos alternativos ao uso de animais

Créditos: Pakhnyushchy Créditos: Pakhnyushchy

Os métodos alternativos ao uso de animais no ensino e na pesquisa estão em grande desenvolvimento. O estímulo para o seu crescimento surge dos conflitos da experimentação animal, que podem incluir questões ideológicas, religiosas, financeiras e/ou jurídicas. Para a melhor compreensão desse cenário, é importante conhecer a história da experimentação animal e as mudanças ocorridas ao longo dos séculos, que culminaram na formação dos ideais que regem atualmente o uso de animais nos meios científico e didático.

Historicamente, os primeiros registros encontrados sobre o estudo de animais datam de 500 a.C., com Alcméon, considerado o avô da medicina – um estudioso grego que dissecava animais para a realização de estudos anatômicos. Posteriormente, em 400 a.C., dando continuidade aos estudos de Alcméon, Hipócrates realizou outros experimentos, dentre os quais vários estudos sobre a circulação sanguínea, concluindo de forma equivocada que as artérias eram preenchidas por ar, uma vez que suas observações eram baseadas exclusivamente em animais mortos. Nos anos 300 a.C., Aristóteles sustentava uma concepção sobre a natureza da vida, distinguindo-a em três classes – vegetativa, animal e intelectual –, sendo que na mesma ordem uma classe existe para o bem da outra, ou seja, os vegetais para o bem dos animais, e os animais para o bem dos homens. Baseado nessa concepção, Aristóteles encontrou justificativa para o uso dos animais sem nenhuma ressalva, partindo do princípio de que era para o bem do homem; sendo assim, também realizou dissecações em animais para seus estudos de anatomia comparada, nos quais utilizou mais de 50 espécies diferentes. Na mesma época, na Escola de Alexandria, Herófilo realizou pela primeira vez a dissecação de um cadáver animal em público, e Erasístrato foi o primeiro a utilizar animais vivos para realizar experimentos, o que derrubou a antiga ideia de que as artérias eram preenchidas por ar. Galeno (129 d.C.-199 d.C.) realizou diversos experimentos que revolucionaram a medicina do seu tempo. Utilizando principalmente macacos nos seus estudos, já que era proibido o uso de seres humanos, criou a teoria de que o cérebro controlaria o movimento de todos os músculos do corpo; incluiu ainda a distinção entre nervos sensitivos e motores. Galeno também foi o primeiro a demonstrar que os rins constituem o órgão excretor de urina. Após a morte de Galeno, os registros de estudos nessa área cessaram, retornando apenas no século XVI.

A experimentação animal volta a ser documentada por Vesalius (1514-1564), na grande obra De Humani Corporis Fabrica (A estrutura do corpo humano). Esse livro é considerado uma das mais influentes obras científicas de todos os tempos, pois compreende um atlas de anatomia completo e de extrema riqueza de detalhes, inclusive refutando algumas descrições previamente realizadas por Galeno. Um dos capítulos intitula-se “A dissecação de animais vivos” e descreve diversos experimentos realizados na época, como a excisão do baço, as secções da medula espinhal e a perfuração da parede torácica, demonstrando que era possível manter um animal vivo mesmo com presença de ar no tórax. Pouco tempo depois, William Harvey (1578-1657) publicou o Estudo anatômico do movimento do coração e do sangue nos animais, no qual descreve a circulação sanguínea de 80 diferentes espécies.

Reinier de Graaf (1641-1673), um fisiologista holandês, realizou estudos em cães para compreender o funcionamento do pâncreas e de algumas enzimas digestivas, que o consagraram como um dos principais fisiologistas do seu tempo. Nos desenhos do seu trabalho podemos visualizar a laparatomia realizada para criar uma fístula no ducto pancreático para a coleta do suco pancreático. Nesses mesmos desenhos, notamos que o cão é amarrado a uma mesa e amordaçado para permitir a realização do procedimento de forma consciente. Para que fosse possível que o animal respirasse, mesmo amordaçado, realizava-se uma traqueostomia.  

Muitos pesquisadores seguiram com a experimentação animal baseados no pensamento de René Descartes, relatado no livro Discours de la méthode (Discurso sobre o método) (1637), segundo o qual os animais não sentiam dor por não possuírem uma alma racional. Na mesma época, no entanto, já se notavam alguns cientistas que atentavam para o sofrimento animal. Robert Hooke (1635-1703) e Robert Boyle (1627-1691) utilizaram animais em alguns experimentos e notaram o seu intenso sofrimento, o que os levou a não querer repetir esses procedimentos. Um dos trabalhos realizados pela dupla foi “Experimento com um pássaro numa bomba de ar”, no qual um pássaro era mantido em um balão de vidro cujo fluxo de ar podia ser controlado. Com o objetivo de avaliar as propriedades do ar, o fluxo era reduzido até o vácuo, e as reações do animal eram analisadas. Outro cientista, Edmund O’Meara (1614-1681), disse que a agonia a que os animais eram submetidos distorcia os resultados obtidos.

Ainda de acordo com os pensamentos de Descartes, diversos cientistas impulsionaram a experimentação animal ao longo do século XVIII, considerada no século XIX um importante método científico. Claude Bernard (1813-1878), médico francês, utilizava animais vivos em seus experimentos, e foi considerado o maior fisiologista de todos os tempos. Foi o responsável pela descoberta e pelo entendimento da homeostase; também descobriu a ação do pâncreas na digestão e provou que o consumo de oxigênio ocorre nos tecidos, mediado pelo sangue, e não nos pulmões. Ele também foi o responsável por incluir a experimentação animal nas instituições de ensino. Segundo Bernard: “A experimentação animal é um direito integral e absoluto. O fisiologista não é um homem do mundo, é um sábio, é um homem que está empenhado e absorto por uma ideia científica que prossegue. Não ouve o grito dos animais nem vê o sangue que escorre. Só vê a sua vida e só repara nos organismos que lhe escondem problemas que ele quer descobrir.”

Paralelamente a Bernard, outros profissionais se importavam com o sofrimento animal, tais como o neurologista Marshall Hall, que em 1831 publicou “The principles of investigation in physiology”, com o objetivo de que se buscasse o menor sofrimento possível na experimentação. Ele preconizava que a experimentação devia ser realizada apenas quando a observação não fosse suficiente, e a repetição dos experimentos somente quando se mostrasse realmente necessária.

Em 1824, na Inglaterra, surge o primeiro órgão responsável pela proteção animal, a Society for the Prevention of Cruelty to Animals (SPCA), que reconhecia a necessidade de algumas experimentações com animais, porém com a ressalva de que esses procedimentos fossem realizados de forma humanitária. Em 1837, a rainha Vitória deu permissão para adicionar o R ao nome da SPCA, e, em 1840, o nome foi alterado para Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA), como é hoje mundialmente conhecida. Nesse período foram criadas outras associações para o controle do uso de animais, como a Société Protectrice des Animaux (SPA), fundada na França em 1845. Em 1876, ainda na Inglaterra, diante do aumento do debate sobre o uso de animais, foi criada a primeira lei que regulamentava a experimentação animal: The Cruelty to Animals Act, 1876.

Em 1954 Charles Hume, fundador da Universities Federation for Animal Welfare (UFAW), propôs o desenvolvimento de um estudo sobre técnicas humanitárias para a experimentação com animais. Os responsáveis por esse estudo foram William Moy Russell e Rex Burch, que publicaram como resultado o livro The Principles of Humane Experimental Technique, no ano de 1959. Nesse livro encontra-se um dos grandes resultados dessa evolução sobre o bem-estar animal, o desenvolvimento do princípio dos 3 Rs. Tal fundamento embasa-se no conceito de redução do número de animais (reduction), escolhendo a melhor estratégia para a execução e o delineamento estatístico da pesquisa; na substituição (replacement) de animais vertebrados sempre que possível por outros materiais inanimados, plantas ou a alternativa que estiver mais viável; e no refinamento (refinement) das técnicas utilizadas, para amenizar ao máximo o sofrimento dos animais ainda expostos aos experimentos.

Após o princípio dos 3Rs, o grande impulso para o desenvolvimento dos métodos alternativos ocorreu em 1961, quando três instituições britânicas (British Union for the Abolition of Vivisection, National Anti-Vivisection Society e Scottish Society for the Prevention of Vivisection) se uniram para a criação do Lawson Tait Medical and Scientific Research Trust, um fundo de investimentos para pesquisadores que não utilizassem animais em seus experimentos. Na mesma década foi criada a United Action for Animals (UAA), em 1967, nos Estados Unidos, e a Fund for Replacement of Animals in Medical Experiments (Frame), em 1969, na Inglaterra, ambas com grande relevância também no incentivo à substituição dos animais na pesquisa. Outro fato relevante da década foi que em 1969 o ganhador do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1960 – maior prêmio concedido a um cientista no mundo –, o brasileiro naturalizado britânico Peter Medawar, afirmou que acreditava que o uso de animais iria gradativamente diminuir, até o momento em que não seria mais necessário, dando ainda mais força às pesquisas em alternativas.

Na década de 1970 os interesses sobre alternativas continuaram a crescer. Em 1971, o Conselho Europeu adotou a Recomendação 621, que regulamenta e realiza a autorização de quais experimentos com o uso de animais serão permitidos, além de estabelecer um fundo de apoio internacional para o uso de alternativas. Nessa mesma década, a Suécia criou o Central Committee on Experimental Animals, que mobilizou cerca de 90 mil dólares para o desenvolvimento de pesquisas em alternativas ao uso de animais, e para isso incluiu uma sessão focada nas alternativas no curso de medicina veterinária. Após investimentos adicionais dos Estados Unidos pela American Fund for Alternatives to Animal Research (Afaar), o primeiro método alternativo bem-sucedido em larga escala foi divulgado: a utilização de cultura celular para testes de toxicidade, em lugar dos testes em animais.

As alternativas continuaram se desenvolvendo e ganhando espaço no meio científico durante a década de 1980. Em 1986, após o Office of Technology Assessment, o U.S. Congress Office of Technology Assessment publicou o livro Alternatives to Animal Use in Research, Testing, and Education, que compilava e ensinava diversos métodos alternativos, tanto para a pesquisa quanto para o ensino em universidades, além de discutir os aspectos éticos e econômicos do uso de animais. Nesse livro, algumas das técnicas apresentadas são a utilização de computadores para simulação da circulação sanguínea; de bombas de infusão para simulação de perfusão de órgãos; de cadáveres e até de suínos, que na época eram considerados um método alternativo ao uso de cães. Durante essa década, as instituições de ensino de medicina dos Estados Unidos e da Europa iniciaram gradativamente o encerramento do uso de animais em seus laboratórios, com um declínio constante e progressivo até os dias atuais. Nos Estados Unidos e no Canadá, todas as escolas de medicina aboliram o uso de animais no ensino desde 2016. Depois disso, a Grã-Bretanha e a Alemanha também aboliram o uso de animais do ensino da medicina. Outros marcos importantes na história atual da experimentação animal se dão no que diz respeito à quebra do arcaico pensamento cartesiano de que os animais não têm uma alma racional. Em 2012, durante a Francis Crick Memorial Conference, na Universidade de Cambridge, foi proclamada a Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal, na qual se reconhece que diversos animais, dentre os quais os mamíferos, as aves e os polvos, têm consciência, e portanto expressam sentimentos, sentem dor e sofrem. Poucos anos após, em 2015, a França mudou sua Constituição, assumindo também os animais não humanos como seres sencientes pelo novo artigo no 515-14. Com esse reconhecimento, os animais passam a ser tratados como sujeitos de direito, assim como os seres humanos, em vez de propriedades ou bens de consumo, como anteriormente.

No Brasil, os primeiros sinais da preocupação com o bem-estar animal se iniciaram em 1925, com a implantação da Sociedade Protetora dos Animais, em Minas Gerais. Apesar disso, o interesse pelas pesquisas nas áreas de métodos alternativos se iniciou apenas em 1999, com Thales Tréz, que influenciou a difusão do conceito de educação humanitária no Brasil. Um marco de grande impacto sobre as considerações relativas ao bem-estar animal e às buscas por métodos alternativos foi a produção do vídeo Não matarás, pelo Instituto Nina Rosa, em 2006. Por meio de cenas chocantes, esse vídeo objetiva sensibilizar os espectadores sobre o sofrimento dos animais usados no ensino e na pesquisa, promovendo grande debate sobre a questão. Outra medida significativa realizada no país foi a implantação da Lei no 11.794/2008, também conhecida como Lei Arouca, que estabelece a necessidade do uso dos 3Rs na experimentação animal e no ensino, e também cria o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea). Desde então, as pesquisas para desenvolvimento de métodos alternativos têm se intensificado nos diferentes ramos da educação, com o apoio de órgãos relacionados e instituições de ensino. Na medicina veterinária, os modelos experimentais ainda não estão amplamente desenvolvidos para substituir todos os tipos de práticas com animais, porém já existem modelos para treinamento de diversos procedimentos que dispensam o seu uso, tais como os utilizados em suturas de pele, punção de acesso venoso, realização de antissepsia, ossos sintéticos para osteossíntese de fraturas e até mesmo modelos de cães inteiros para estudos de anatomia e fisiologia. Alguns estudos realizados com estudantes de medicina veterinária já mostram a opinião favorável dos alunos à utilização de métodos alternativos ao uso de animais nas aulas práticas, com o objetivo de minimizar o sofrimento animal.

Na Universidade Federal do Paraná (UFPR), desde 2014 iniciou-se o desenvolvimento de métodos alternativos próprios para o ensino de semiologia e clínica médica de pequenos animais, buscando métodos acessíveis e de baixo custo. Com o auxílio dos projetos de iniciação científica, mestrado e doutorado, os modelos são desenvolvidos e posteriormente testados em aulas práticas para verificar a aceitação do método pelos alunos. Métodos como modelo para palpação prostática, coluna para simulação de lesões medulares e membro torácico para treinamento de acesso venoso já têm mostrado resultados positivos sobre a aquisição de habilidades práticas e crescente aceitação pelos alunos.

A utilização de métodos alternativos como modalidade de ensino e pesquisa tem se mostrado de extrema utilidade nas mais diversas áreas do conhecimento. Com o avanço da tecnologia, as possibilidades de métodos mais fiéis a um animal vivo aumentam, melhorando a qualidade dos modelos, das aulas ministradas, do aprendizado dos alunos e das pesquisas que os utilizam.

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Referências

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