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Editorial

A ponta do nosso nariz

Editorial 158

Matéria escrita por:

Maria Angela Sanches Fessel

2 de maio de 2022


O mundo em que vivemos é de uma complexidade infinita, surpreendente. Apesar de nosso esforço para manter uma representação estável do que consideramos “realidade”, isto é, das nossas certezas e nossos pontos de vista e de apoio, as recentes convulsões planetárias nos têm situado num cenário de grande indefinição.

A revolução digital, com sua constante reformulação de postulados e papéis, as mudanças nos protocolos de relacionamento, de formação profissional e nos modelos de trabalho, tudo isso segue adiante em meio à intervenção brutal de uma pandemia ainda resistente. A emergência de formas manipuladoras e massificantes de lidar com a informação, a maior força e a aceitação de um discurso político violento, ressentido e preconceituoso, amparado por fake news incessantes, tudo isso nos coloca numa situação de insegurança. Para coroar, temos ainda uma guerra a revelar não só a brutalidade e a estupidez humanas, mas também todas as riquezas em jogo – das quais geralmente a maior parte das populações está excluída –, os interesses estratégicos dos grandes conglomerados financeiros e da indústria da guerra, e o papel da mídia de privilegiar e impor narrativas em vez de estimular uma reflexão crítica.

O cenário atual é não só de indefinições políticas e econômicas, mas de grandes reacomodações mundiais, sociais e pessoais. Vivemos à mercê de decisões políticas e econômicas viciadas, com o poder sempre concentrado nas mesmas mãos, numa sensação geral de receio do futuro, insegurança, receio do próximo, um pé atrás em relação a tudo, com estímulo a uma postura individualista, precavida e isolada. Em outras palavras, fomos empurrados para o interior de nós mesmos.

Apesar de tudo isso, em vez de adotar uma postura temerosa e resguardada, podemos aproveitar essa grande oportunidade para tentar pôr ordem na casa, já que fora de nós o caos prevalece e tende a aumentar. Para isso é fundamental, antes de mais nada, um exercício constante de atenção plena que nos pode fazer perceber dentro de cada um de nós um centro, um núcleo anímico que pode redirecionar nossa percepção das coisas ou pelo menos impedir que sejamos levados pela maré predominante.

Podemos fazer uma reavaliação dos valores que sejam capazes de fazer frente à arrogância e à estupidez reinantes. Entre eles, alguns valores que há milênios sofrem para ganhar a compreensão efetiva de nossa espécie desarvorada, que corre para o precipício da ausência de ética e de moralidade. São valores como a humildade, no sentido de desistir de uma postura centrada nas urgências do próprio ego. E também a gratidão, o amor, a compaixão, não só como virtudes a serem exibidas aos outros ou a nós próprios, mas como caminhos para a expansão da nossa consciência.

Podemos travar um combate interno frutífero ao mudar a vibração usual e aceitar o outro, acolher o diferente, aquele que não crê naquilo que cremos, que não age como agimos, que não valida nossas escolhas. Podemos buscar livrar-nos do apego a nós mesmos, à nossa necessidade de achar que estamos sempre certos. O momento atual nos traz um chamado a amadurecer, a virar “gente grande”. O que vemos aí fora, cotidianamente, é o reforço de uma postura irresponsável e individualista, o palco ocupado por imaturas crianças de 2 anos de idade. Algumas delas, crianças tolas e perversas. O bem e o mal estão dentro de todos nós. Precisamos de coragem, no plano profissional e no plano pessoal, para buscar uma atenção plena, constante, um conhecimento melhor de nós mesmos, de nossos valores, que nos leve a um caminho de compaixão. Que nos faça perceber o outro, incluir o outro, sendo o outro um ser humano ou qualquer outra forma de vida, um rio, ou o planeta todo.

Na pandemia, os muito ricos ficaram mais ricos ainda. Os mais pobres, mais miseráveis. Mas ficamos todos mais egoístas. O medo nos leva a essa retração. Precisamos de coragem para despertar nossa compaixão. Sem compaixão, não enxergaremos realidade nenhuma. Veremos apenas a ponta do nosso nariz arrogante.