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Saúde coletiva

A importância do acompanhamento psicológico a médicos-veterinários residentes

Residentes são submetidos a diversos tipos de fatores estressantes

Estressores são constantes no dia a dia dos residentes. Créditos: Robert Kneschke Estressores são constantes no dia a dia dos residentes. Créditos: Robert Kneschke

O exercício da profissão da medicina veterinária é um desafio para os profissionais recém-formados. Diversos deles ingressam em programas de residência médico-veterinária – que são modalidades diferenciadas de ensino de pós-graduação destinadas a médicos-veterinários, caracterizadas por um programa intensivo de treinamento profissional supervisionado em serviços de assistência médico-veterinária – prestados por instituições de ensino superior que oferecem Programa de Residência Médico-Veterinária. Durante esse período de aperfeiçoamento, o profissional deve fazer um balanço entre seus deveres profissionais de cuidar e de curar, estabelecendo os limites de sua identidade pessoal e profissional e lidando muitas vezes com sentimentos de desamparo em relação ao complexo sistema assistencial. Sabe-se que os residentes são submetidos a diversos tipos de fatores estressantes que podem produzir efeitos danosos, afetando tanto a sua qualidade de vida quanto a da assistência prestada aos pacientes 2.

São muitos os fatores que comprometem a saúde e a qualidade de vida de médicos residentes. O período de transição aluno/médico, a responsabilidade profissional, o isolamento social, a fadiga, a privação do sono, a sobrecarga de trabalho, o medo de cometer erros e outros ligados ao processo de formação na residência estão associados a reações psicológicas, psicopatológicas e comportamentais 3, incluindo estados depressivos que desencadeiam ideias suicidas, tornando os médicos residentes um grupo de risco no que se refere a distúrbios emocionais como depressão, ansiedade, estresse, síndrome de burnout e fadiga por compaixão. 

Diversos estudos demonstram que os principais fatores que contribuem para o nível de estresse elevado na rotina dos médicos-veterinários são as longas horas de trabalho, o tempo pessoal insuficiente, a falta de dias de folga ou férias, insultos pessoais por parte de clientes e colegas, salário inadequado, falta de reconhecimento pelo seu trabalho por parte do público e falta de tempo por paciente 4,5. Todos esses estressores interpessoais crônicos presentes no ambiente de trabalho podem levar ao desenvolvimento de síndromes mais graves, como a síndrome de burnout. Além disso, o estresse crônico não tratado tem sido relacionado ao aparecimento de condições potencialmente debilitantes, como a depressão 6,7. Um estudo mostra que os níveis de depressão em profissionais veterinários são significativamente maiores do que na população em geral 8.

A síndrome de burnout, uma das condições às quais os residentes estão sujeitos, é definida como exaustão emocional relacionada ao trabalho e à sua inefetividade 9,10. Os médicos residentes vivenciam uma duplicidade de funções, pois são cobrados por seus supervisores, pela sociedade e por si mesmos como alunos em aprendizagem, com exaustivas jornadas de trabalho e tarefas obrigatórias, mas devem agir como profissionais dos quais se exige cada vez mais responsabilidade, competência e eficiência. Exaustão emocional, despersonalização, redução da realização pessoal no trabalho, insatisfação, insuficiência, baixa autoestima e desmotivação são alguns dos indicadores dessa síndrome. Um estudo realizado no Canadá demonstrou que 38,8% de uma população de 1.272 médicos-veterinários analisada poderiam ser classificados como apresentando síndrome de burnout, dentre os quais a parcela de mulheres era significativamente maior em comparação ao número de homens 11.

Outro importante problema que acomete os residentes é a sonolência excessiva decorrente das longas jornadas de trabalho. Um estudo realizado nos Estados Unidos aponta que grande parte dos médicos residentes apresentam privação crônica de sono, fazendo utilização regular de álcool ou medicamentos para ajudar a dormir. Embora no Brasil haja resoluções que estipulam uma jornada máxima de 60 horas semanais 1, e destas, 80% de práticas em serviço e 20% de atividades teóricas, muitos estudos apontam importantes problemas de saúde decorrentes da excessiva jornada de trabalho, como síndrome de burnout, depressão, fadiga, estresse e ansiedade 2.

Há também um grande diferencial para essa classe profissional em comparação a outras da área da saúde: a eutanásia dos seus pacientes. O ato não é livre de efeitos colaterais, podendo ocasionar alguns efeitos psicológicos. Devido a todos esses fatores, a taxa de suicídio dos médicos-veterinários é quatro vezes superior à da população geral e duas vezes superior à de outras profissões da área da saúde 12. Um estudo demonstrou que a implementação de programas de assistência aos residentes com apoio profissional psicológico produz uma melhora tanto na qualidade da capacitação profissional, em termos de lidar com o estresse do treinamento, como também na qualidade de vida pessoal 13.

Objetivou-se com este estudo avaliar a percepção dos residentes de medicina veterinária do Programa de Residência em Área Profissional de Saúde do Hospital Veterinário da UFPR (Praps-HV/UFPR) em relação à importância do acompanhamento psicológico durante a residência. O estudo foi realizado em novembro de 2017 com os residentes de medicina veterinária do Praps-HV/UFPR.

Desenvolveu-se um questionário (Figura 1) com perguntas abertas e fechadas como instrumento de coleta de dados. Os questionários eram anônimos, e, antes de iniciar o preenchimento, os residentes concordavam em participar da pesquisa. Perguntou-se se os residentes já realizavam algum tipo de acompanhamento psíquico (psicológico ou psiquiátrico), se consideravam importante haver acompanhamento psicológico para os profissionais veterinários, se eles utilizariam algum tipo de acompanhamento psicológico caso fosse disponibilizado no hospital veterinário e quais eram as questões que mais lhes causavam incômodo/angústia na rotina médica.

 

Figura 1 – Questionário sobre o acompanhamento psicológico para médicos-veterinários residentes do Hospital Veterinário da Universidade Federal do Paraná

 

Do total de 48 residentes, 39,5% (19/48) de nove diferentes áreas de especialização responderam ao questionário (Figura 2). Dos respondentes, 79% (15/19) eram do gênero feminino e 21% (4/19) do gênero masculino.

 

Figura 2 – Gráfico de distribuição dos médicos-veterinários residentes respondentes por área de especialização

 

Constatou-se que 42,1% (8/19) já realizavam algum tipo de acompanhamento psíquico, sendo que, desses 8 residentes, 25% (2/8) realizavam acompanhamento psiquiátrico, 25% (2/8) acompanhamento psicológico e 50% (4/8) ambos.

Quando questionados sobre a importância do apoio psicológico para médicos-veterinários residentes, 100% (19/19) dos respondentes afirmaram considerar importante a existência de algum tipo de acompanhamento e 84,2% (16/19) afirmaram que utilizariam um serviço de acompanhamento psicológico caso fosse ofertado pelo programa.

Com relação às questões vivenciadas na rotina médico-veterinária que mais traziam incômodo para os residentes, as mais citadas foram os maus-tratos aos animais (17/19); relacionamentos interpessoais, sobrecarga de trabalho, carga horária excessiva e falta de valorização profissional foram agrupados na categoria “outros” (Figura 3).

 

Figura 3 – Gráfico das situações com animais que causavam maior incômodo/angústia aos residentes na rotina médica

 

As situações de maus-tratos, negligência e abandono, frequentes na rotina clínica e apresentadas pelos residentes, podem ocasionar aos médicos-veterinários uma condição causada por vinculação empática aos pacientes, a fadiga por compaixão,  definida como fardo emocional de cuidar do outro, em consequência da exposição contínua e excessiva a eventos traumáticos. Considerada um tipo especial de burnout, refere-se à exaustão de profissionais que lidam com sofrimento 14. Devido a essa conexão emocional, os profissionais podem ser afetados negativamente, o que os torna emocionalmente vulneráveis 15.

Com relação à eutanásia, também citada pelos residentes como situação causadora de incômodo e angústia, sabe-se que a realização do procedimento está relacionada à ocorrência de estresse nos profissionais veterinários 16. As situações de eutanásia podem envolver o profissional em dilemas morais estressantes pela dificuldade em conciliar as suas convicções com o que lhe é pedido ou com o que tem de fazer 17. Apesar de a prática ser considerada rotineira, o assunto é tratado com indiferença pelos profissionais mais experientes, um fenômeno conhecido como dessensibilização 18.

Os residentes expressaram a vontade de participar de programas de apoio psicológico durante o programa de residência, e o estudo demonstrou a necessidade desse apoio. Atendendo a essa demanda, no final de 2017 foi implantado um programa de acompanhamento psicológico com encontros quinzenais coletivos para que os residentes pudessem compartilhar e resolver situações conflituosas de sua rotina médico-veterinária. O programa contou com a ajuda do prof. Márcio Cesar Ferraciolli, docente da UFPR, e de seus alunos extensionistas.

Devido ao fato de que múltiplos fatores podem contribuir para o comportamento suicida de médicos-veterinários, as estratégias de prevenção do suicídio devem adotar uma abordagem holística, que reconheça a importância dos fatores ocupacionais e psicossociais associados aos transtornos psicológicos na profissão, para melhorar o estado psicológico dos profissionais e, em última análise, reduzir o número de casos de suicídio 19. É necessário também que os veterinários reconheçam problemas de saúde mental em si mesmos e procurem ajuda antes que eles se tornem crônicos e levem ao suicídio. Nesse aspecto, o acompanhamento psicológico pode auxiliar os médicos-veterinários na resolução de conflitos pessoais e interpessoais, nas questões éticas e a lidar melhor com o estresse, proporcionando maior bem-estar mental aos profissionais e, consequentemente, melhor qualidade na assistência prestada aos pacientes.

 

Referências

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