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Enriquecimento ambiental – ferramenta de bem-estar para abrigos de gatos

Ferramenta de bem-estar para abrigos de gatos

Sleeping Ragdoll kitten in white hammock on white background Linn Currie Sleeping Ragdoll kitten in white hammock on white background Linn Currie

Introdução 

O ambiente de confinamento dos abrigos representa muitos desafios para os felinos, e várias causas podem aumentar ou diminuir a manifestação de estresse nesse ambiente, tais como o tamanho dos espaços ofertados, os tipos de acomodações, a disponibilização de pontos de fuga e descanso, as estruturas dos abrigos, o manejo dos animais e a forma de interação com eles – o tom de voz, a movimentação nas atividades no recinto, os vínculos afetivos desenvolvidos com os cuidadores(as), as brincadeiras –, além do grau de enriquecimento ambiental (EA) 1.

Os maiores problemas para os felinos são as limitações de espaço, a perda da previsibilidade e o controle sobre o ambiente em que estão inseridos. Os gatos são muito apegados ao local em que vivem, à rotina, à familiaridade e à habilidade de escolher exercitar-se ou não. Devido ao ambiente desconhecido do abrigo, aos cheiros aos quais não estão familiarizados e à proximidade de gatos com os quais não estão acostumados, é comum que os felinos se sintam estressados quando chegam aos abrigos. Enquanto os níveis de estresse diminuem conforme os animais se adaptam ao seu novo ambiente, é importante monitorar cuidadosamente os sinais de depressão durante esse período. O tempo de adaptação de cada indivíduo varia em relação ao novo ambiente, e é preciso selecionar técnicas adequadas de gestão e fazer escolhas de enriquecimento para garantir que os níveis de estresse não permaneçam altos por períodos prolongados 2.

 

Necessidades ambientais dos gatos

O conhecimento sobre o comportamento da espécie abrigada e suas necessidades ambientais é um ponto fundamental para os abrigos de animais, principalmente antes de se instituir um protocolo adequado de estratégias de ferramentas de enriquecimento ambiental. Aplicando medidas apropriadas e realizando o manejo com base nelas, tornaremos os gatos mais saudáveis, mais felizes e mais pacientes, e faremos deles companheiros acessíveis 3. Na figura 1 se apresentam as necessidades ambientais básicas dos gatos.

 

Figura 1 – Necessidades ambientais básicas para a manutenção de uma boa qualidade de vida para gatos abrigados. Modificado (4)

 

O ambiente físico é um fator crítico para o bem-estar animal e pode influenciar os níveis de agressão; assim sendo, a qualidade do espaço dos animais abrigados merece a maior atenção. Quando as necessidades de um animal não são atendidas, mesmo que o tamanho do recinto seja consideravelmente grande, os aspectos fisiológicos podem ser afetados de forma negativa, levando à diminuição do bem-estar. É importante estar atento às necessidades de cada espécie para que o sistema de enriquecimento seja viável 5.

As expressões faciais de um gato, a postura corporal, o comportamento e as vocalizações podem fornecer informações úteis sobre o estado emocional em que ele se encontra. Os gatos expressam seus estados emocionais negativos (frustração, ansiedade ou medo) de duas maneiras, a depender do temperamento do indivíduo: ativa ou passivamente 6. Apesar de o primeiro estado ser aparentemente mais preocupante, gatos que foram observados por 36 horas mostraram que o estado passivo pode causar mais angústia, inibição e a necessidade de maior tempo para se adaptar ao ambiente de abrigo, em comparação a gatos de temperamento ativo. Em ambos os casos, se o estado emocional for sustentado, suas respostas comportamentais serão graves e/ou prolongadas e podem se manifestar por meio de problemas de comportamento como micção em locais inapropriados, pulverização, agressão e excesso de lambeduras ao limpar-se; e, em casos mais delicados, o animal pode automutilar-se, com consequentes implicações no seu bem-estar.

As caixas higiênicas são outro aspecto importante para levar em conta no ambiente de um gato. Uma eliminação felina normal envolve uma sequência de comportamentos, incluindo escavar antes de evacuar, postura de eliminação e cavar para enterrar as fezes ou a urina. As caixas higiênicas largas e abertas fornecem espaço adequado para esses comportamentos normais. As caixas automáticas com autolimpeza podem ser práticas, mas seu som e movimento podem fazer com que os animais passem a evitá-las, além de constituírem um custo alto para os abrigos; as caixas cobertas podem reter maus odores, além de impedir os gatos de observar outros animais aproximando-se durante o ato de eliminação, tornando essa opção menos apropriada 7.

Assim como os potes de ração e água, que devem estar longe do local de eliminação, as caixas sanitárias devem ser colocadas em locais seguros e quietos, para que os gatos não sejam impedidos de acessá-las por outros animais. Além disso, devem estar dispostas longe de maquinários que possam interromper a sequência do comportamento normal de eliminação. As caixas devem ser higienizadas todos os dias e lavadas com sabão neutro, e o substrato deve ser trocado semanalmente 7. O uso de feromônios sintéticos ajuda a reduzir a ansiedade, além de aumentar o autocuidado, o interesse na comida e o uso correto da caixa sanitária 3.

Em abrigos de animais, principalmente os que têm gatil coletivo, deve haver vários lugares seguros e em áreas separadas um do outro. Um local seguro, como uma toca, por exemplo, deve ter mais de uma entrada, de modo que o acesso não possa ser facilmente bloqueado por outro gato. A quantidade de locais seguros deve ser equivalente ao número de animais, e eles devem ser dimensionados para abrigar um único gato. Para filhotes e animais idosos que tenham mobilidade limitada, devem-se colocar caixas, poleiros e prateleiras a uma altura relativamente baixa ou em níveis que possam ser alcançados por meio de rampas, para garantir fácil acesso. Além disso, um ponto importante, em abrigos mistos, é a necessidade de os gatos estarem separados fisicamente dos cães 3. Áreas de recuo ou locais seguros podem ser criados de várias maneiras diferentes, incluindo caixas de transporte comerciais, caixas de papelão, anexando uma cortina em um poleiro que já existe ou pendurando materiais fora da baia. (Figura 2).

 

 

Figura 2 – Mesmo em espaço limitado, fornecer aos gatos recursos e enriquecimentos apropriados pode garantir níveis maiores de bem-estar. Modificado (7,8)
1-Portal – permite a separação da área de alimentos e cama da de eliminação, e aumenta o espaço em comparação com uma única gaiola.
2-Cama elevada – proporciona espaço confortável e distante do chão, permitindo maior visão do ambiente.
3-Esconderijo – toalhas penduradas, tocas e caixas de papelão.
4-Suporte para vasilhas de alimento e água preso à porta – conserva arrumado o espaço, eleva a alimentação, requer abertura cuidadosa da porta, reduzindo o ruído.
5-Porta em gradil – proporciona boa ventilação e permite interação com adotante.
6-Brinquedos – ratos de brinquedo, bola etc.
7-Trancas e dobradiças silenciosas – diminuem o ruído ao abrir e fechar a porta.
8-Cobertura parcial da gaiola – toalha ou cortina, proporciona reclusão e tranquilidade ao gato e permite que a equipe o monitore.
9-Superfície de arranhadura – permite expressão do comportamento natural. Deve acompanhar o gato do abrigo para o novo lar.
10-Caixa higiênica – com dimensões que permitam a postura natural e atenda às necessidades físicas de animais com limitações, por exemplo, osteoartrite. Não deve haver prateleiras acima da caixa higiênica.

 

O enriquecimento ambiental como uma ferramenta de bem-estar

Muitos distúrbios físicos ou comportamentais vistos nos gatos frequentemente podem ser associados ao estresse provocado pela falta de estímulos apropriados. O enriquecimento ambiental (EA) deve fazer parte do plano de tratamento geral para esses distúrbios. Como parte do exame de bem-estar, é responsabilidade do médico-veterinário discutir o estado atual do ambiente em que o animal está inserido e fornecer as informações necessárias para que seja possível fazer o enriquecimento ambiental 9. O EA é uma ferramenta importante dentro dos abrigos de animais para proporcionar um bom grau de bem-estar, sendo sua implementação crucial parte fundamental das estratégias de criação de um ambiente minimamente saudável, visto que um ambiente empobrecido conduz ao aumento do sofrimento animal e contribui para o desenvolvimento de distúrbios comportamentais.

Dessa maneira, o EA pode ser definido como um processo que muda estruturas e práticas de manejo e tem como objetivo reduzir o estresse e ampliar o nível de bem-estar, provendo estímulo físico e mental, encorajando os comportamentos normais da espécie e permitindo ao animal ter mais controle sobre o seu meio. O EA é tão importante quanto os cuidados de saúde, nutrição e clínicos, e não deve ser considerado opcional 10.

Os métodos de EA podem ser categorizados em cinco tipos: sensorial (EASe), nutricional (EAN), ambiental físico (EAF), ocupacional (EAO) e social (EASo) 12. Um EA pode fazer parte de mais de uma categoria ao mesmo tempo 6 (Figuras 3 a 5).

 

Figura 3 – Gatos utilizando prateleiras (11)

 

 

Figura 4 – Brincadeiras interativas não fornecem apenas enriquecimento, mas também podem facilitar a interação entre gatos e adotantes, mesmo quando os animais hesitam em se aproximar (12)
Figura 5 – Gatos descansam em troncos embaixo de guarda-sol; estruturas para subir, se pendurar e se esconder (11)

 

O enriquecimento ambiental sensorial (EASe) busca estimular os sentidos do gato. Pode ser realizado de maneira simples e de baixo custo, por meio do uso de cheiros, sons, texturas e imagens no ambiente em que o animal se encontra. O objetivo é estimular, nesta ordem, o olfato, a audição, o tato e a visão 14;

• O enriquecimento nutricional (EAN) tem como propósito introduzir diferentes formas de fornecer o alimento ou novos alimentos. Diversas espécies de animais passam grande parte do dia com atividades relacionadas à alimentação, desde a procura até o processamento e o consumo. Este tipo de enriquecimento permite que o animal leve mais tempo para se alimentar, estimulando os comportamentos típicos da espécie 15;

• O enriquecimento ambiental físico (EAF) refere-se à estrutura física do ambiente onde os animais estão inseridos. Consiste na introdução de elementos com o objetivo de deixar os recintos parecidos com o habitat natural de cada espécie. Podem-se inserir vegetação e diferentes substratos, como folhas secas, grama, terra ou areia, dentre outros 16;

• O enriquecimento ocupacional (EAO) pode ser descrito como os processos mentais relacionados à aprendizagem, ao processamento da informação, à formação de memórias e outras funções mentais, como reconhecer, diferenciar, selecionar e recordar lugares. Esse enriquecimento é responsável pela inclusão de objetos no ambiente, resultando no estímulo mental do animal 17. Foram comprovados os efeitos positivos do enriquecimento ambiental cognitivo por meio do aumento do tempo gasto em comportamentos relacionados à alimentação e às atividades físicas, e também da redução das vocalizações 18;

• O enriquecimento social (EASo) é aquele em que há interação entre indivíduos da mesma espécie ou de espécies diferentes 19.

Existem muitas ferramentas de EA que vêm sendo utilizadas não somente em abrigos para cães, mas com outras espécies. Algumas sugestões estão relacionadas na figura 6.

 

Referências

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