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MVColetivo

Criação comercial de animais de companhia no Brasil

Proibir é a solução?


Introdução

A criação comercial de animais de companhia vem sendo discutida em diferentes esferas governamentais, principalmente em debates e fóruns de proteção animal, promovidos e propostos pelo Legislativo no âmbito federal, municipal e estadual. Recentemente, esse tema vem ganhando maior visibilidade nos meios de comunicação, devido aos projetos de lei que regulamentam ou proíbem a venda de filhotes no Brasil e mesmo em outros países.

Esse assunto traz como principal preocupação as chamadas “fábricas de filhotes”, canis clandestinos ou não fiscalizados que exploram animais, fazendo com que estes sejam submetidos a situações extenuantes e maus-tratos, como, por exemplo, as cadelas matrizes que se reproduzem no limite de sua capacidade para procriar o maior número possível de filhotes por ano. Essa atividade tem como único objetivo o lucro financeiro, privando de bem-estar as matrizes e os reprodutores, que na maioria das vezes são encontrados em situações gravíssimas de maus-tratos e negligência em ambientes insalubres. Os filhotes nascidos nesses locais são comercializados em feiras, pet shops ou clínicas veterinárias. Desse modo, o comprador não conhece a realidade e a situação lamentável em que vivem os progenitores do animal de companhia que adquiriu 1.

Entretanto, sabe-se que essas situações não são a realidade de todos os canis. Muitos criadores buscam fornecer condições adequadas e com alto grau de bem-estar para seus animais, já que para muitas famílias brasileiras essa é a principal fonte de renda. Dessa maneira, entende-se que o assunto deve ser debatido e que se atinja um objetivo comum que satisfaça tanto os bons criadores quanto os militantes da causa animal, e, consequentemente, os animais que vivem nessas condições.

 

A discussão pelo mundo

Diversas iniciativas com relação a esse tema ocorreram no ano de 2018. Em julho do mesmo ano, o estado de Victoria, na Austrália, proibiu a reprodução comercial de animais de companhia, abolindo também a venda de filhotes em feiras, parques, pet shops e clínicas veterinárias, dando fim às fábricas de filhotes 2. A lei foi chamada de Oscar’s Law (Lei de Oscar), inspirada em um cão chamado Oscar, que foi resgatado de uma situação de maus-tratos em um canil no país. Oscar foi encontrado em estado severo de negligência, com danos físicos e psicológicos por ter sido mantido como reprodutor durante cinco anos em uma fábrica de filhotes.

No Reino Unido, no final de 2018, foi proibida a venda de filhotes com menos de seis meses de idade em pet shops da Grã-Bretanha, com o objetivo de não os submeter a situações de maus-tratos. Caso o comprador deseje um animal mais jovem, deverá adquiri-lo diretamente do canil, evitando dessa maneira as fábricas de filhotes. A lei entrou em vigor em 2019 e ficou conhecida como Lucy’s Law (Lei de Lucy), em homenagem à cadela Lucy, da raça cavalier king charles spaniel, resgatada de uma fábrica de filhotes no País de Gales no ano de 2013. Lucy viveu a vida confinada em uma gaiola, o que lhe causou danos irreversíveis no quadril, principalmente pela falta de exercício 3. De maneira semelhante, no estado da Califórnia (EUA), a venda de cães, gatos e coelhos em pet shops está proibida desde janeiro de 2019, sendo permitida apenas a exposição de animais oriundos de abrigos ou organizações não governamentais (ONGs) 4. Mesmo assim, a compra e venda de animais ainda é legalizada no estado, mas deve ser realizada diretamente com os criadores, o que foi considerado um grande avanço para a proteção animal da Califórnia.

No Brasil, ainda não há uma lei federal que proíba ou regulamente a venda de animais de companhia em pet shops, nem as criações comerciais de animais de companhia em pet shops, nem as criações comerciais de animais de companhia. Alguns municípios têm sido vanguardistas na discussão da venda de animais de raça, como Porto Alegre, RS, cuja Lei Municipal nº 6942012 proíbe a venda ou a doação de animais com menos de 90 dias em pet shops, para assegurar que sejam socializados, desmamados e vacinados no tempo correto. A lei também proíbe que os filhotes sejam expostos por mais de cinco horas por dia em vitrines externas e feiras, para evitar que os animais fiquem estressados. Além disso, está em tramitação o Projeto de Lei (PL) nº 89/2017, que pretende aumentar a idade mínima de exposição para 180 dias, atualizando o Código Municipal de Proteção aos Animais 5.

No município de Santos, SP, foi sancionada a Lei Municipal nº 1.041/19, que proíbe a criação e a comercialização de3 animais considerados domésticos na cidade. Segundo o responsável pelo PL, o objetivo é “descoisificar” os animais, pois eles não podem mais ser considerados mercadorias. A lei foi sancionada em setembro de 2019, e estabeleceu-se um prazo de 180 dias para a regularização dos estabelecimento 6,7.

Em Curitiba, PR, tramita na Assembleia Legislativa do Paraná o PL nº 185/2019, que em sua redação original proibia a venda de animais em pet shops e clínicas veterinárias, assim como a venda online de filhotes. O projeto obrigaria que todas as vendas fossem realizadas diretamente por criadores; dessa forma, a população interessada conheceria a origem dos filhotes 8. Porém, após a realização de uma audiência pública, devido à pressão de criadores e figuras públicas, o PL foi reestruturado e retrocedeu em alguns aspectos, como em relação à permissão de venda em estabelecimentos comerciais e à exclusão do item que abordava o comércio digital, que fica, dessa forma, permitido 9.

 

Animais como objeto de compra e venda

Parecem ser unânimes entre ativistas da causa animal, entidades de proteção animal e criadores o zelo, o respeito e o apreço pelos animais. Considerando que eles são classificados como seres vivos dotados de senciência, surge o questionamento: como os animais ainda podem ser objetos de compra e venda? Nos anos 1980, Tom Regan, um ativista, filósofo e professor emérito da Universidade da Carolina do Norte que foi um grande nome na área do direito animal, expôs sua teoria conhecida como abolicionismo.

Nos seus trabalhos, Regan comparou o modo como tratamos os animais à forma como tratávamos os escravos, que na época sombria da escravatura eram considerados bens materiais, produtos de compra e venda. Assim como os negros foram pessoas destituídas de direitos até 1888 no Brasil, as mulheres também sofreram discriminação, e somente em 1963 obtiveram direitos iguais aos dos homens no meio jurídico. Por mais que essa comparação possa parecer absurda, antes da proibição da escravidão, esses comportamentos de compra e venda eram aceitos, da mesma forma que hoje é vista a exploração animal. Após terem seus direitos fundamentais reconheciedos simplesmente por serem seres humanos, as pessoas nunca mais puderam ser tratadas como coisas, como objetos de compra e venda. Seguindo a mesma linha de raciocínio, os animais deixariam de ser considerados coisas e passariam a ser sujeitos de direitos.

No ano de 2012 foi publicada a Declaração de Cambridge sobre consciência, de acordo com a qual o seres humanos não são os únicos a terem os substratos neurológicos que a geram 10. Essa declaração se baseia nas evidências de que os animais têm senciência, ou seja, sentimentos – sente dor, fome, medo e podem entrar em depressão.

A definição de dignidade de um ser é existir como fim em si mesmo, não como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade. Immanuel Kant afirmava que apenas os seres humanos eram dignos 11. Atualmente, alguns grupos propõem o contrário: que a dignidade deve ser protegida por uma coletânea mínima de direitos fundamentais.

Em agosto de 2019, foi aprovado no Senado Federal o Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 27/2018, conhecido como “Animal não é coisa”, que diz respeito à natureza jurídica dos animais e que, em teoria, reconheceria que os animais são dotados de senciência e, consequentemente, não são meros objetos ou bens móveis 12. Entretanto, a lei causou desconforto em setores ruralistas, pois essa informação poderia pôr fim ao abate de animais para produção de carne no Brasil. Dessa maneira, foi acrescentado um parágrafo único retirando esse status dos animais de produção e daqueles envolvidos em “manifestações culturais”, como rodeios e vaquejadas, praticas enquadradas como patrimônio cultural, em que eles são explorados para entretenimento do ser humano. Sendo assim, no Brasil, apenas os animais de companhia não são mais considerados “coisas” pela legislação, apesar de serem também objetos de compra e venda. Mesmo sendo especialista, essa lei pode ser considerada um avanço para a discussão do direito animal, corroborando o que acontece em alguns países europeus (Alemanha, Áustria, Suíça, França e Portugal) que também já consideram legalmente que os animais não são coisas 3.

 

Canis clandestinos: maus-tratos aos animais e risco à saúde pública

Somente no estado do Paraná, no período de janeiro a maio de 2019, foram apreendidos mais de 300 animais em canis clandestinos em Curitiba e região metropolina, por meio da Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA), conforme a figura 1. A criação comercial é proibida em áreas urbanas em todo o estado desde 2001, conforme o Código de Saúde do Estado do Paraná. Segundo o código, qualquer tipo de criação em área urbana é ilegal no estado, entretanto, só é considerado crime quando há comprovação de maus-tratos aos animais 14.

 

Figura 1 – Cadela da raça poodle apreendida de um canil clandestino na região metropolitana de Curitiba, PR, no ano de 2019, no qual era utilizada como matriz. O animal apresentava-se em situação extrema de negligência, com lesões odontológicas e oftálmicas graves. Créditos: Cíntia Parolim Ferraz

 

Em Curitiba, PR, a criação de animais é proibida, pois trata-se de um município com área totalmente urbana 15. No ano de 2019, 225 cães de 10 canis clandestinos foram apreendidos por maus-tratos no município e abrigados a cargo de fiéis depositários até que pudessem ser encaminhados para a adoção permanente. No entanto, muitos desses aniamis apresentavam lesões no trato reprodutivo, como edema, eritema e outras lesões escrotais em machos, e secreção vulvar e abortamentos em fêmeas. Alguns deles foram testados e diagnosticados com brucelos canina, epidemia que grassava nos canis clandestino. Essa situação é de extrema complexidade, pois traz riscos à saúde pública, uma vez que cães desses canis podem ter sido comercializados para diferentes localidades e ter entrado em contato com inúmeros animais e pessoas.

Em fevereiro de 2019, a rede de pet shops Petz, uma das maiores do Brasil, anunciou que não comercializaria mais filhotes em nenhuma de suas 82 lojas no país. A decisão foi tomada pelos proprietários da rede após 1.700 animais serem apreendidos em situação de maus-tratos no canil Céu Azul, localizado na cidade de Piedade, SP, que era um dos seus fornecedores de fihotes. Atualmente, a rede Petz realiza uma parceria com ONGs e protetores independentes por meio do Projeto Adote Petz, direcionando espaços anteriormente ocupados para a venda de cães de raça para a promoção da adoção de animais resgatados, em um modelo semelhante ao adotado na Califórnia 16.

A falta de regulamentação permite que inúmeros criadores que não têm conhecimento das instruções básicas dos cuidados com os animais ou não as pratiquem continuem gerando situações graves de maus-tratos, conforme as figuras 2 a 6. A ausência de fiscalização também é um ponto importante, pois facilita que tais atividades sejam desenvolvida sem nenhum critério ou punição. Uma vez que se determinem regulamentos e legislações conforme o Manual de Boas Práticas de Criação, publicado em 2019 pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), será possível determinar um padrão técnico que deverá ser seguido pelos criadores, o que facilitará as ações de fiscalização 17.

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Figura 2 – Canil ilegal vistoriado em 2013 em São José dos Pinhais, PR. Cão da raça beagle com infecção crônica nos olhos e na pata direita. Créditos: Alexander Welker Biondo

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Figura 3 – Canil ilegal vistoriado em 2013 no bairro de Orleans em Curitiba, PR. Cães mantidos em pequenas gaiolas, sob péssimas condições de higiene e sem solário. Créditos: Alexander Welker Biondo

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Figura 4 – Canil ilegal vistoriado em 22 de outubro de 2013 no bairro Cajuru em Curitiba, PR. Fêmea pinsche com filhotes em péssimas condições de higiene, risco de choques, curto-circuito e incêndio. Créditos: Alexander Welker Biondo

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Figura 5 – Canil ilegal vistoriado em 22 de outubro de 2013 no bairro do Cajuru em Curitiba, PR. Fêmea lhasa-apso com filhotes em péssimas condições de higiene, risco de choques, curto circuito e incêndio. Créditos: Alexander Welker Biondo­

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Figura 6 – Canil ilegal vistoriado em 22 de outubro de 2013 no bairro do Cajuru em Curitiba, PR. Atendimento, microchipagem e retidada para adoção imediata dos cães, feita pela Rede de Proteção Animal da Secretaria Municipal do Meio AMbiente com apoio da Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente, com base na Lei Municipal nº 13.908/2011, que no Artigo 16, Parágrafo 3º, estabelece que “Em caso da constatação da falta de condição mínima para a muntenção do(s) animal(is) sob a guarda do inflrator, fato esse constatado no ato da fiscalização pela autoridade competente, fica autorizado o município à remoção do(s) mesmo(s), se necessário com o auxílio de força policial. Caberá ao município promover a recuperação do(s) animal(is) (quando pertinente) em local específico, bem como destiná-lo(s) para a adoção, devidamente identificado(s)”. Créditos: Alexander Welker Biondo

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O que alegam os defensores da criação comercial

A principal e mais plausível justificativa apresentada pelos criadores para demonstrar a importância da prática da criação de animais de companhia são as habilidades específicas das raças, que por muitos anos foram selecionadas por meio de melhoramento genético para obter as características desejadas, a fim de que pudessem auxiliar o ser humano de diferentes formas em suas atividades, como, por exemplo: o labrador, com habilidade nata para ser utilizado com o cão-guia; o pastor-belga-malinois, com sua aptidão de farejador, muito utilizado pela polícia em todo o mundo; e o border-collie, com seu instinto para o pastoreio 18.

Entretanto, raças criadas como cães de colo (lapdogs), como lulu-da-pomerânia, lhasa-apso e shih-tzu, são muito populares entre os brasileiros. Essa função não poderia ser exercida por um cão sem raça definida?

Outro argumento apresentado é a liberdade de escolha das pessoas ao adquirirem um animal. Parte da população entende que a adoção é um ato nobre, mas muitos indivíduos têm paixão por uma determinada raça, e só aceitam adquirir animais com determinadas características. Algumas campanhas buscam mudar a mentalidade das pessoas, pois pertencer a uma raça específica não deveria promover ao cão um valor maior do que o de uma outra raça.

Além disso, um animal de companhia deve ser cuidadosamente escolhido de acordo com suas características comportamentais e não as meramente estéticas, a fim de se adaptar à família com a qual conviverá. Muitas vezes as pessoas adquirem um cão de raça exclusivamente pela sua aparência, desconhecendo características comportamentais intrínsecas da raça, como o temperamento, o que pode ser um fator de abandono futuro. O melhor exemplo disso é a raça chow-chow, que quando filhote é semelhante a um ursinho de pelúcia, porém, devido ao seu temperamento imprevisível, acaba muitas vezes causando agravos por mordeduras e gerando frustração em seus tutores. O abandono de cães de raça é muito comum, e pode se dar por questões comportamentais, mas principalmente por sua maior suscetibilidade e predisposição a doenças 19.

A reprodução e a venda de animais de companhia envolvem muito dinheiro e representantes de todas as classes, abrangendo desde pessoas que dependem das vendas para seus sustento até negócios altamente lucrativos. De modo semelhante, muitos médicos-veterinários são criadores ou trabalham com reprodução de animais de companhia, realizando inseminações, diagnóstico de gestação e cesarianas, entre outros procedimentos.

A proibição total dessa prática no país causaria grande impacto na economia. Assim, acredita-se que o melhor caminho no momento é regularizar adequadamente a criação, a fim de evitar criadores clandestinos ou não fiscalizados e, consequentemente, maus-tratos aos animais.

 

A predisposição e maior suscetibilidade de certas raças às doenças

Segundo dados da Confederação Brasileira de Cinofilia (CBKC), o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking de registro de naimis, 143.314 cães registrados em 2018, sendo o buldogue-francês, o spitz-alemão-anão (lulu-da-pomerânia) e o shit-tzu as três raça mais registradas 20. Entretanto, esses números podem não ser verdadeiros, visto que grande parte dos animais de raça não são adquiridos por meio de canis legalizados, e sim de criadores informais, o que torna os dados reais desconhecidos. As raças citadas acima são as atuais “raças da moda”, como já foram o poodle e o pequinês; no entanto, essas modas vão passando conforme vão sendo conhecidas as doenças às quais esses animais são predispostos e que muitas vezes acabam manifestando ao longo da vida, o que pode gerar muitas despesas ao tutor.

Com o “melhoramento” genético das raças, realizaram-se cruzamentos com o objetivo de dotar as próximas gerações das características físicas desejadas. Porém, além de selecionar tais caracterísiticas, também foram selecionados genes de suscetibilidade ou predisposição a doenças adquiridas e/ou congênitas. Como exemplo disso, temos o pastor-alemão, principal cão policial até os anos 1990, que foi selecionado para ter o quadril mais rebaixado em relação à cernelha, predispondo consequentemente a raça à displasia coxofemoral. Por essa razão, o pastor-alemão foi sendo substituído pelo pastor-belga-malinois em sua função policial.

Outro exemplo é a raça pug, ainda muito popular, que apresenta predisposição para uma série de doenças respiratórias, como a síndrome das vias aéreas braquicefálicas – uma consequência da seleção de focinhos curtos –, entre outras anormalidades anatômicas encontradas em muitos exemplares da raça. Essas alterações, como estenose de narinas e palato mole alongado, dificultam a respiração, o que pode aumetar o esforço respiratório e levar ao colapso 21. Além disso, esses cães também são predispostos a diversas enfermidades oftalmológicas, por terem os olhos protrusos 22, e neurológicas, como epilepsia e meningoencefalite necrosante (encefalite do cão pug) 23,24.

Diversas outras raças apreciadas pelos brasileiros são predispostas à dermatite atópica canina e à hipersensibilidade alimentar, como: buldogue-francês, shit-tzu, lhasa-apso, maltês, yorkshire, labrador, golder-retriever e muitas outras 23. Essas doenças fazem com que o cão esteja predisposto a diversas infecções de pele e necessite de tratamento ao longo de toda a vida, o que traz desgaste financeiro e emocional para o tutor.

Além dos exemplos citados, o fato é que todos os animais de raça podem carregar consigo a predisposição a diversas doenças congênitas ou maior suscetibilidade a doenças infecciosas, como os cães das raças doberman, pit-bul, rottweiler e labrador, que são algumas das mais suscetíveis à parvovirose 25. Doenças de caráter hereditário não são exclusivas dos cães, acomentendo também os gatos de raça, como o persa em relação à doença dos rins policísticos 26 e as raças maine-coon e ragdoll em relação à cardiomiopatia hipertrófica 27. Entretanto, no Brasil, os gatos de raça não são tão comuns quanto os cães. 

Essas predisposições raciais não significam que apenas os animais de raça ficam doentes, mas que talvez os animais sem raça definida não tenham um peso genético predeterminante para o desenvolvimento de doenças específicas. Ao comercializem um animal, os criadores deveriam explicitar ao comprador todas as doenças às quais a raça tem predisposição, a fim de não gerar frustração e, consequentemente, abandono. Todo comprador deveria assinar um termo de responsabilidade, afirmando que tem ciência das doenças às quais o animal é predisposto e que se compromete a custear quaisquer tratamentos necessários, uma vez que muitas pessoas compram filhotes de raça de maneira impulsiva e baseada apenas na aparência e na beleza dos animais de companhia.

 

A venda de filhotes em pet shops e feiras

Expor filhotes à venda pode envolver muitos pontos problemáticos. O primeiro ponto é que esses animais muitas vezes são deixados sozinhos em recintos por muitas horas do dia, apesar de serem muito jovens. A fase de socialização de um cão é muito curta: entre a 3ª e a 12ª semana de vida; a de um gato é ainda mais curtal da 2ª à  8ª semana de vida. Nesse período, é fundamental que o filhote permaneça com a mãe e os irmão, a fim de aprender a conviver socialmente, estabelecendo relacionamentos e vínculos, e para que comportametos indesejados, como a mordedura, sejam inibidos. Ao serem desmamados muito cedo para serem comercializados nesse período, os filhotes caninos ou felinos podem se tornar problemáticos futuramente com relação às interações sociais 28.

Conforme citado anteriormente, ao comprar um filhote em um estabelecimento comercial ou em uma feira, o tutor não conhecerá as condições nas quais vivem as matrizes e reprodutores, fomentanto, dessa maneira, as fabricas de filhotes. O mesmo se aplica às vendas online. Além disso, a exposição de filhotes para venda pode fazer com que sejam comprados por impulso. Um cão ou um gato somente de ser considerado como animal de companhia depois de muita análise de todos os prós e contras envolvidos, somado ao fato de que todos os moradores da residência que conviverão com ele devem estar de acordo com sua presença.

 

Considerações finais

A proibição da criação de animais de companhia talvez não seja a melhor forma de enfrentar essa situação problemática, visto que poderia piorar a questão da clandestinidade, apesar de não haver evidências concretas ou estudos técnico-científicos a respeito. Acredita-se que a melhor opção seja a regulamentação das criações comerciais de animais de companhia, assom como a proibição da venda em pet shops, clínicas veterinárias, casas agropecuárias, feiras e meio eletrônicos, tendo como objetivo evitar animais problemáticos futuramente, abandono e, principalmente, as “fábricas de fihotes”. Dessa forma, o consumidor seria obrigado a adquirir seu animal diretamente no canil, tendo a oportunidade de conhecer a realidade na qual vivem as matrizes, os reprodutores e os filhotes. Além disso, devia-se seguir os bom exemplo da Califórnia, onde apenas animais de abrigos ou resgatados pelas ONGs podem ocupar espaços em pet shops e feiras, aumentando a taxa de adoção e, consequentemente, diminuindo a taxa de eutanásia desses animais.

Tendo como cenário o Brasil, onde existem milhões de cães e gatos errantes com e sem raça definida, além de inúmeros abrigos lotados com animais de diferentes tamanhos e características, pode-se questionar a necessidade de adquirir um animal de determinada raça simplesmente para suprir um desejo ou uma vaidade. Seria necessário investir em educação e sensibilização da sociedade, visto que, a partir do momento em que houvesse esse entendimento, o comércio de animais automaticamente não seria alimentado. Entende-se que, enquanto houver demanda por animais domésticos de raça, haverá também mercado para supri-la.

A educação infantil tem sido uma estratégia para melhorar essa realidade. Deve-se ensinar às crianças que um cão de raça e um cão sem raça definida têm o mesmo valor, e que não se pode colocar preço em uma vida, uma vez que os animais já perderam legalmente o status de coisas. No entanto, esse horizonte ainda é utópico, pois a criação de animais é uma atividade comercial fortemente estabelecida não apenas no Brasil como também em outros países e continentes.

Para que a regulamentação seja possível, uma frente parlamentar com segmentos representativos de diferentes setores, com conhecimentos distintos a respeito do assunto, deveria ser mobilizada.A questão deveria ser debatida, a fim de se criar uma política igualitária, sem que nenhum dos lados fosse prejudicado. Após essa etapa, poderia caber aos criadores uma autorregulamentação. Também se poderiam criar critérios de denúncias para o poder público, com o intuito de extinguir os canis de criadores que não obedecessem às norma. Cabe ao médico-veterinário a obrigatoriedade de fornecer o respaldo técnico para os criadores, por meio da responsabilidade técnica, garantindo que todos os animais que se encontrem nesses locais tenham alto grau de bem-estar.

 

Referências

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17-OLIVEIRA, K. S. Manual de boas práticas na criação de animais de estimação: cães e gatos. Goiânia: CIR Gráfica e Editora, 2019. 98 p. Disponível em: <http://portal.cfmv.gov.br/uploads/files/manual-de-boas-praticas-na-criacao-de-animais-de-estimacao-modulo-caes-e-gatos.pdf>. ISBN: 978-85-63828-27-9.

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