Menu

Clinica Veterinária

Início Notícias Especialidades Cirurgia Resolução cirúrgica de eventração inguinal em tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis) – relato de caso
Cirurgia

Resolução cirúrgica de eventração inguinal em tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis) – relato de caso

- relato de caso

Tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis). Créditos: Chaquito Tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis). Créditos: Chaquito

Surgical treatment of inguinal eventration in argentine terrestrial turtle (Chelonoidis chilensis) – case report

Resolución quirúrgica de una eventración inguinal en una tortuga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis) – relato de caso

 

Clínica Veterinária, Ano XXV, n. 144 p. 46-50 2020

DOI: 10.46958/rcv.2020.XXV.n.144.p.46-50

 

Resumo: A eventração, que pode se produzir em qualquer local do abdômen, é caracterizada pela ausência do saco herniário, em função de rompimento do peritônio, e pela presença da pele. No presente caso se descreve uma eventração inguinal esquerda crônica associada a uma deformação da diáfise femoral do membro direito num exemplar de tartaruga terrestre argentina fêmea de 30 anos de idade. A paciente foi remetida a consulta em função da existência de uma deformação mole e não dolorosa na fossa lombar esquerda e de claudicação de terceiro grau no membro posterior direito. O diagnóstico da presença de eventração de um dos lóbulos da bexiga e de alças de oviduto foi obtido com ajuda de exame ultrassonográfico. Este artigo descreve o procedimento anestésico e a técnica cirúrgica utilizada para a abordagem à cavidade celomática pela fossa lombar esquerda, assim como a resolução do defeito na parede celomática que o animal apresentava.

Palavras-chave: cirurgia, hérnia, quelônios, testudines

 

Abstract: Eventration is a separation of the musculoaponeurotic layers of the abdominal wall resulting in protrusion of abdominal contents, and characterized by the absence of the hernial sac and intact skin.  We describe a case of chronic left sided eventration associated with deformity of the right femoral fossa in a 30-year-old female Argentine land tortoise. The animal was referred for evaluation of a soft and non-painful deformity of the left lumbar fossa and third degree lameness of the left posterior limb. Eventration of one bladder lobe and oviduct loops was diagnosed by ultrasonography. We describe the anesthetic protocol and the surgical technique used in the treatment with approach to the coelomic cavity through the prefemoral fossa, as well as the resolution of the abdominal wall defect.

Keywords: surgical treatment, hernia, chelonia, testudines

 

Resumen: Una eventración puede producirse en cualquier lugar del abdomen, y está caracterizada por la ausencia del saco herniario, generalmente por ruptura del peritoneo parietal, y por la presencia de piel. Este relato presenta el caso de una eventración inguinal izquierda crónica, además de una deformación de la diáfisis femoral del miembro derecho de un ejemplar hembra de una tortuga terrestre argentina de 30 años. La paciente fue derivada para consulta por una deformación blanda indolora en la fosa lumbar izquierda, y claudicación de tercer grado en el miembro posterior derecho. La ultrasonografía permitió diagnosticar la eventración de uno de los lóbulos de la vejiga y alzas del oviducto. Este artículo describe el procedimiento anestésico y la técnica quirúrgica utilizada para el abordaje a la cavidad celomática a través de la fosa lumbar izquierda, así como también la resolución del defecto en la pared abdominal que presentaba el paciente.

Palabras clave: cirugía, hernia, quelonios, testudines

 

Introdução

Existem três tipos de saídas de conteúdo abdominal através da parede. As hérnias são formadas por um saco herniário (peritônio), pelas estruturas intracavitárias (gordura, omento ou qualquer órgão) no seu interior e por um anel herniário. As hérnias devem ter um saco herniário, e a saída das estruturas se produz através de um orifício anatomicamente constituído (ex: o anel inguinal ou o anel umbilical, que caracterizam as hérnias inguinais e umbilicais) 1.

O segundo tipo de saída de conteúdo abdominal é a eventração, que pode se produzir em qualquer local do abdômen e é caracterizada por dois fatos: a ausência do saco herniário – pelo rompimento do peritônio – e a presença da pele, sendo que não há saída do conteúdo para o exterior 1.

O terceiro tipo é a evisceração, que tem as mesmas características da eventração, só que há ruptura da pele e saída do conteúdo abdominal para o exterior 1.

Essa diferenciação tem importância prognóstica. A não ser que haja alguma complicação, as hérnias e as eventrações não costumam oferecer problemas, mas a evisceração configura um procedimento de emergência pelo risco de desenvolvimento de um quadro séptico 1. 

Sua etiopatogenia é diversa e inclui fatores predisponentes, como idade avançada, déficit nutricional com desenvolvimento incompleto da musculatura, cirurgias prévias e fatores desencadeantes, como esforços ou eventuais traumas 2. As complicações derivadas das hérnias e eventrações incluem a aparição de estrangulação das alças intestinais, retenção de fecalomas, ruptura das vísceras, infecções por necrose vascular e perfurações. A resolução é sempre pela via cirúrgica, com os devidos cuidados pós-operatórios, a fim de evitar as recidivas. O objetivo do presente relato é a descrição do protocolo anestésico e da técnica cirúrgica para a resolução da eventração em uma tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis).

 

Relato do caso 

Uma tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis) fêmea de 30 anos de idade e alimentada com mistura de frutas e legumes foi levada a consulta por apresentar andar dificultoso e presença de uma deformação na fossa lombar esquerda. O animal alimentava-se por seus próprios meios e tinha um adequado estado de gordura, de acordo com a sua idade e tamanho. O tutor relatou que a tartaruga havia sido submetida a um tratamento de doença óssea metabólica por longo período com injeções diárias de sais de cálcio, e que, algum tempo após esse tratamento, ela apresentou claudicação do membro posterior direito (MPD) que foi se agravando com o tempo, até que os tutores decidiram realizar uma segunda consulta.

O exame clínico permitiu detectar a presença de uma claudicação de terceiro grau do membro posterior direito e uma deformação mole, móvel, pouco dolorosa e visível na fossa lombar do lado esquerdo, de vários meses de evolução (Figura 1).

­

­

Figura 1 – Tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis) fêmea de 30 anos de idade. A) Círculo vermelho evidenciando deformação na fossa lombar. B) Setas evidenciando massa que ocupa todo o espaço lombar anterior ao membro posterior esquerdo. Créditos: Juan Carlos Troiano

­

Perante a suspeita de fratura no membro direito, indicou-se uma avaliação radiológica que mostrou uma deformação evidente na diáfise femoral, provavelmente como resultado de marcha forçada. É possível que o osso tenha alcançado esse estado de deformação pelo fato de o animal transferir o peso para o membro direito, uma vez que junto ao esquerdo a massa  dificultava o andar, provavelmente causando dor (Figura 2).

­

Figura 2 – Imagens radiográficas de tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis) fêmea de 30 anos de idade. Círculos evidenciando deformação do fêmur direito. A) Observa-se diáfise encurvada como consequência de marcha forçada pela presença da eventração dos órgãos. B) Imagem de fêmur normal para comparação. Créditos: Juan Carlos Troiano

­

Perante a presença da deformidade descrita, particularmente a de tecidos moles, solicitou-se exame ultrassonográfico que mostrou a presença de uma estrutura compatível com bexiga dentro da fossa lombar e embaixo da pele (Figura 3).

­

Figura 3 – Imagem ultrassonográfica de tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis) fêmea de 30 anos de idade evidenciando o conteúdo de evisceração inguinal. É visível a presença de órgão cavitário, de imagem compatível com bexiga (seta). Abaixo da imagem da bexiga podem ser observadas as alças do oviduto ressaltadas nos círculos vermelhos. Créditos: Juan Carlos Troiano

­

A cirurgia foi decidida por causa do diagnóstico de eventração inguinal e do risco de celomite ou peritonite causada por ruptura de órgãos e estrangulação de alças intestinais, além de aderência de alguns dos órgãos eventrados. Procedeu-se à medicação pré-anestésica com uma associação de butorfanol a 0,1 mg/kg, midazolam b 0,25 mg/kg e cetamina c 10 mg/kg aplicada pela via endovenosa na veia caudal dorsal previamente canalizada; a indução anestésica foi feita com isoflurano 3% d mediante utilização de tubo endotraqueal número 2 sem cuff, e o mesmo fármaco (1%) foi indicado para manutenção. A paciente foi colocada em decúbito lateral e realizou-se a antissepsia com iodopovidona 20% (Figura 4).

­

Figura 4 – Anestesia de tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis) fêmea de 30 anos de idade. O animal foi entubado com tubo endotraqueal sem cuff após medicação pré-anestésica e posicionado em decúbito lateral. Créditos: Juan Carlos Troiano

­

Para a celiotomia foi utilizada uma abordagem pela fossa lombar esquerda, e logo após a divulsão da pele e da musculatura, observou-se a presença de dois órgãos no local, identificados como um dos  lóbulos de bexiga e alças do oviduto esquerdo (Figura 5) sem a presença de saco herniário interno, evidenciando o caso como uma eventração.

­

Figura 5 – Bexiga e alças de oviduto eviscerados de tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis) fêmea de 30 anos de idade. Observam-se um dos lóbulos da bexiga e alças de oviduto; ambos os órgãos sem saco herniário formado por peritônio. Créditos: Juan Carlos Trooiano

­

Um exame detalhado da parede celomática revelou a presença de um defeito (desgarro da parede inguinal) através do qual deu-se a saída dos órgãos (Figura 6). A seguir realizou-se a reintrodução do lóbulo vesical e do oviduto, seguida da síntese do defeito da parede celomática, com sutura em pontos separados com náilon monofilamento 2-0. 

­

Figura 6 – Sutura e fechamento do defeito da parede celomática de tartaruga terrestre argentina (Chelonoidis chilensis) fêmea de 30 anos de idade. Observa-se sutura das capas musculares com náilon 2/0 prévio a sínteses da pele. Créditos: Juan Carlos Troiano

­

A pele foi suturada com os mesmos materiais, com pontos simples separados. Como medicação pós-cirúrgica, utilizou-se meloxicam e 0,2 mg/kg a cada 24 horas, aplicado pela via subcutânea durante 3 dias, e prescreveu-se medicação antibiótica de gentamicina f parenteral na dose de 2,5 mg/kg a cada 24 horas por via SC durante 10 dias. Após a cirurgia, a alimentação natural foi mantida, e o animal recuperou a atividade em 10 dias, sendo que não houve complicações durante o pós-operatório até a retirada dos pontos da pele.

Como a claudicação se mantinha, administrou-se medicação com meloxicam oral por aproximadamente 2 meses. A medicação foi descontinuada após esse período, quando o animal voltou a apresentar um andar normal, sem claudicação.

 

Discussão

Eventrações e hérnias são achados frequentes nos répteis, se bem que são poucos os casos relatados em quelônios 1. Geralmente a origem é traumática, e elas também podem ocorrer a partir de uma base genética, por debilidade congênita da parede celomática 1,3. No presente caso, por suspeita de doença óssea metabólica por longo período, o animal havia sido submetido a um tratamento com injeções diárias de sais de cálcio que provocou a claudicação do MPD, agravada com o tempo. Uma causa provável do desgarre da parede abdominal seria um manejo pouco cuidadoso do animal em um esforço desmedido para conseguir a exteriorização do membro posterior esquerdo para possibilitar a aplicação do medicamento referido (sais de cálcio). 

O diagnóstico diferencial é muito importante e deve excluir causas neoplásicas, granulomas infecciosos ou parasitários, retenção de ovos, cálculos vesicais, ovos soltos no celoma ou ruptura do oviduto, abscessos, fraturas de ossos longos e hematomas.

É indispensável a realização de métodos complementares do diagnóstico, como radiologia e ultrassonografia, com a finalidade de excluir todas as possíveis causas de deformação da fossa lombar.

A cirurgia sob anestesia geral é o método de eleição para a adequada resolução das hérnias em quelônios, para impedir subsequentes recidivas, assim como as complicações decorrentes delas 2-4. A celiotomia pela via inguinal permite o acesso rápido à cavidade celomática e a seu conteúdo, além de diminuir os tempos de recuperação do animal quando comparada com a técnica clássica de celiotomia por plastrotomia ventral 5-9. 

 

Produtos utilizados

a) Torbugesic ®. Laboratorio Zoetis. Buenos Aires, Argentina
b) Midazolam ®. Laboratorios Richmond. Buenos Aires, Argentina 
c) Ketonal ®. Laboratorios  Richmond Laboratórios. Buenos Aires, Argentina 
d) Isoflurano Baxter ®. Laboratorios Aponor. Buenos Aires, Argentina 
e) Meloxivet Inyectable ®. Laboratorios John Martin. Buenos Aires, Argentina
f) Gentamicina Inyectable ®. Laboratorios Richet, Buenos Aires, Argentina

 

Referências

01-SMEAK, D. D. Hernias. In: BOJRAB, M. J. ; WALDRON, D. R. ; TOOMBS, J. P. Current techniques in small animal surgery. 5. ed. Jackson: Teton NewMedia, 2014. p. 564-588. ISBN: 978-1591610359.

02-MADER, D. R. ; BENNETT, R. A. ; FUNK, R. S. ; FITZGERALD, K. T. ; VERA, R. ; HERNANDEZ-DIVERS, S. J. Surgery. In: MADER, D. R. Reptile medicine and surgery. 2. ed. Philadelphia: W. B. Saunders, 2006. ISBN: 978-0721693279.

03-DI GIROLAMO, N. ; MANS, C. Reptile soft tissue surgery. The Veterinary Clinics of North America. Exotic Animal Practice, v. 19, n. 1, p. 97-131, 2016. doi: 10.1016/j.cvex.2015.08.010.

04-HERNANDEZ-DIVERS, S. J. Surgery: principles and techniques. In: GIRLING, S. J. ; RAITI, P. BSAVA manual of reptiles. 2. ed. Gloucester: British Small Animal Veterinary Association, 2004. p. 147-167. ISBN: 978-0905214757.

05-MANGONE, B. ; JOHNSON, J. D. Surgical removal of cystic calculi via the inguinal fossa and other techniques applicable to the approach in the desert tortoise, Gopherus agzzizii. In: PROCEEDINGS OF THE ASSOCIATION OF REPTILIAN AND AMPHIBIAN VETERINARIANS, 5., 1998, Kansas City. Proceedings… Kansas City: ARAV, 1998. p. 87-88.

06-KNOTEK, Z. ; WILKINSON, S. L. Surgery. In: DONELEY, B. ; MONKS, D. ; JOHNSON, R. ; CARMEL, B. Reptile medicine and surgery in clinical practice. 5. ed. Chichester: Wiley-Blackwell, 2018. p. 383-396. ISBN: 978-1118977675.

07-ALWORTH, L. C. ; HERNANDEZ, S. M. ; DIVERS, S. J. Laboratory reptile surgery: principles and techniques. Journal of the American Association for Laboratory Animal Science, v. 50, n. 1, p. 11-26, 2011. 

08-GIBBONS, P. M. Reptile and amphibian urinary tract medicine: diagnosis and therapy In: SCIENTIFIC PROCEEDINGS OF THE ANNUAL MEETING OF THE ASSOCIATION OF REPTILE AND AMPHIBIAN VETERINARIANS, 2007, New Orleans. Proceedings… New Orleans: ARAV, 2007. p. 1-18.

09-BRANNIAN, R. E. A soft tissue laparotomy technique in turtles. Journal of American Veterinary Medicine Association, v. 185, n. 11, p. 1416-1417, 1984.