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A medicina veterinária de desastres em Mariana e Brumadinho

Importância da inclusão de animais nos planos de emergência

Matéria escrita por:

Vania de Fátima Plaza Nunes, Alexander Welker Biondo

2 de mar de 2019

Vista aérea de parte da área atingida pelos rejeitos provenientes do rompimento da barragem da Vale no Córrego do Feijão. Créditos: Vania de Fátima Plaza Nunes Vista aérea de parte da área atingida pelos rejeitos provenientes do rompimento da barragem da Vale no Córrego do Feijão. Créditos: Vania de Fátima Plaza Nunes

Introdução

A medicina veterinária de desastres e catástrofes carrega consigo novos e importantes desafios que exigem um envolvimento multidisciplinar do setor público e privado. Dentre as funções tradicionais de maior destaque, em protocolos consagrados em diferentes países, estão a necessidade de instaurar e manter planos de controle da salubridade alimentar e de prevenção das populações de pragas e vetores. Entretanto, é necessário que os animais das diferentes espécies e classificações sanitárias componentes da comunidade atingida sejam também resgatados, para que se realize a avaliação individual e a triagem, e possam receber tratamento ou eutanásia. Nesse caso, é necessária a implantação de medidas sanitárias e humanitárias relativas à destinação desses animais. Por outro lado, se após a triagem não forem detectados maiores problemas, eles deverão ser alojados temporariamente em estruturas de apoio previamente montadas, que tenham profissionais e condições para garantir o seu bem-estar enquanto estiverem abrigados 1.

Segundo dissertação defendida na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa em 2016, os desastres podem acometer vários ecossistemas, provocando distúrbios na fauna e na flora, e atingem populações que, pela própria definição de desastre, não são capazes de responder de forma adequada 1. Quando os desastres acontecem, há mobilização de equipes para procurar restabelecer condições minimamente aceitáveis de sobrevivência. No entanto, os animais não humanos acabam ficando fora desses planos e ações, deixando a cargo das Organizações Não Governamentais (ONGs) e de voluntários o ônus de suprir as lacunas deixadas. Isso ocorre pelo despreparo tanto dos serviços estatais (nos casos de desastres naturais) como das empresas responsáveis (nos casos de desastres que poderiam ter sido evitados).

O estudo português ainda revela que o Plano Municipal de Emergência de Proteção Civil de Lisboa não chegou a incluir os animais de companhia na sua estrutura – o que foi proposto pela dissertação defendida na Universidade de Lisboa.

 

Desastres naturais e não naturais

Nos anos 1980, foram elaborados estudos considerando o tipo e a duração dos desastres, o grau de impacto na vida humana, o potencial de ocorrência e a capacidade de controle numa próxima ocorrência. Uma nova classificação tipificou os desastres a partir de: agente causal, duração, extensão, número de vítimas, tempo decorrido até início dos tratamentos primários pelas organizações de resgate, organização dos transportes e da evacuação de feridos, e gravidade das enfermidades. Estas últimas ainda se dividiam em lesões mecânicas, de radiação, choque emocional e outras doenças 1.

Os desastres não naturais se dão em consequência do aumento do número de substâncias e materiais perigosos inerentes ao desenvolvimento humano, tendo sido definido o termo “antropogênico” para o fenômeno artificial causado pelo homem – por sua ação ou falta dela, fruto de sua negligência ou erro.

A Organização das Nações Unidas (ONU) tipificou em 1997 alguns perigos que poderiam originar desastres tecnológicos, como a liberação de agentes químicos para a atmosfera por fogos e/ou explosões, o derramamento de produtos químicos, marés negras, acidentes aéreos, contaminação de origem militar e liberação de material biológico em atividade industrial, entre outros 2.

 

Experiência de Mariana, MG

O desastre de Mariana, MG, aconteceu no dia 5 de novembro de 2015. À época, um grupo de ONGs e voluntários dos direitos dos animais resgatou mais de 300 animais no momento seguinte à tragédia. Muitos desafios foram enfrentados naquele episódio, tanto pelos médicos-veterinários quanto pelos voluntários ligados à proteção e à defesa animal.

Esses desafios perduraram tanto no período imediato após o desastre – devido à aglomeração dos animais, ao estresse enfrentado pelo acidente e ao longo período de manutenção em ambiente coletivo –  como pela necessidade de se destinarem os animais não reclamados pelos antigos tutores, o que exigia novas medidas, como programas de adoção ou tutelamento monitorado de equídeos, pela empresa responsável pelo desastre da barragem até o final da vida dos animais.

Entidades como o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal (FNPDA) se mobilizaram tanto para arrecadar recursos nos instantes iniciais como para monitorar o Ministério Público no sentido de organizar melhor o atendimento crucial para a saúde dos animais, em curto, médio ou longo prazo. Esse atendimento é fundamental para as famílias atingidas – que muitas vezes dependiam de uma vaca ou algumas galinhas para seu sustento, ou tinham com um animal de estimação um vínculo fundamental num momento de vulnerabilidade e perda de sua relação sociocultural com a área atingida –, além de visar também o restabelecimento da saúde e do bem-estar de cada animal envolvido.

Além dos animais domésticos, também os animais silvestres sofreram e morreram em Mariana. Segundo o Ibama, baseado na análise de toda a área atingida pelos rejeitos de minério da barragem, esse impacto pode ter atingido até 400 espécies na bacia do rio Doce, incluindo espécies de plantas, de 64 a 80 espécies de peixes, 28 espécies de anfíbios, 4 espécies de répteis, de 112 a 248 espécies de aves e ainda 35 espécies de mamíferos 3.

O texto publicado na edição n° 120 da revista Clínica Veterinária, de janeiro/fevereiro de 2016, conclui que: “A ação que envolve o resgate e o manejo dos animais atingidos pelo desastre em Mariana possui vários pontos positivos e negativos, sendo fundamental que se faça uma reflexão profunda sobre as ações possíveis, as necessárias e o cenário ideal nesse desastre em particular. Dessa forma, em situações futuras, a atuação do médico-veterinário e dos voluntários envolvidos no salvamento dos animais poderá se inserir no plano de ação de maneira mais explícita, inclusive nas medidas preventivas, fazendo jus ao conceito de Saúde Única” 4.

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Esquema que ilustra a sequência de etapas necessárias na elaboração do plano de ação para situações calamitosas sugeridas após o desastre de Mariana, MG. Modificado 4

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O rompimento da barragem em Mariana, MG, foi o maior desastre ambiental do Brasil. Apesar de a Samarco (subsidiária da Vale) à época ter assumido a gestão dos serviços e suprimentos necessários à qualidade de vida dos animais impactados pelo acidente da barragem a partir de 10/12/2015, estes não foram incluídos no plano de emergência criado para o caso de novos desastres.

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Bovinos mortos pelos rejeitos. Créditos: Vania de Fátima Plaza Nunes

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Experiência de Brumadinho, MG

O rompimento da barragem da Vale no Córrego do Feijão em Brumadinho, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, MG, ocorreu às 12h28, no dia 25 de janeiro de 2019.

Segundo o Departamento de Redução do Risco de Desastres das Nações Unidas 5, previamente à tragédia, o perfil de perigo de Brumadinho incluía os fatores físicos e ambientais de vulnerabilidade, como a ocorrência de inundação, solapamento, deslizamento de terra e incêndio florestal. O plano de redução apresentado pela prefeitura da cidade incluía o treinamento básico de defesa civil aos agentes de saúde, assistentes sociais e voluntários relativo a: noções básicas de como agir em momentos de risco; mapeamento das áreas de risco; formação de um conselho municipal de proteção e defesa civil; implementação do plano municipal de redução de risco; e elaboração de um plano de contingência.

Como em Lisboa e em Mariana, os animais ficaram de fora do plano de contingência em Brumadinho, que dependeu de voluntários e organizações de classe (Conselho Regional de Medicina Veterinária) para ajudar nas buscas e no resgate de animais atingidos pelo rompimento da barragem.

A rápida e certeira ação de profissionais de medicina veterinária de Minas Gerais que se mobilizaram juntamente com voluntários já participantes de ações no rompimento da Barragem da Samarco em Mariana e na enchente de 2018 da região do rio Casca foi fundamental para o resgate dos animais diretamente envolvidos nas áreas atingidas e no auxílio àqueles que ficaram para trás na desocupação dos habitantes das áreas atingidas ou sob risco. O CRMV-MG, cuja Comissão de Bem-Estar Animal é coordenada pela dra. Ana Liz Bastos, estabeleceu uma força-tarefa denominada Brigada Animal, que, poucas horas após a ruptura da barragem da Vale em Brumadinho, já estava no local atuando de forma rápida e segura nos resgates – sempre sob a supervisão e autorização da Defesa Civil local e do Corpo de Bombeiros, que coordenou e liderou a ação.

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Médica-veterinária Ana Liz Bastos, coordenadora da Brigada Animal e membro da diretoria do CRMV-MG, passando recomendações e dividindo equipes para trabalho de campo. Créditos: Vania de Fátima Plaza Nunes

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Em todo o processo de resgate dos animais existiram múltiplos grupos de colaboradores, voluntários e até mesmo organizadores que se somaram, cada um fazendo alguma parte da ação, e nem todos ficaram o tempo todo nem acompanharam todas as etapas, sendo que as últimas foram (e ainda estão sendo) realizadas por equipes locais e de longo termo. Desse modo, optamos por descrever o montante de um desses grupos, sediado na fazenda disponibilizada pela própria Vale.Os resultados da tabela descrevem apenas um período de tempo e espaço dentro deste universo de ações, mais bem coordenadas graças à acumulada (e trágica) experiência de Mariana.”

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Espécie Descrição
Cães Total de cães assistidos até 25/1/19: 70. Alguns cães foram encaminhados para atendimento: – Clínica Santo Agostinho: 1 em cuidados intensivos e 2 para tratamento; – MedVet: 11 em tratamentos diversos; – Clínica Gutierrez: 11 em tratamentos diversos. Encaminhados para hospedagem: – Pethouse Hotel: 15 cães; em Contagem: 9. Nasceram 9 filhotes no dia 2/2/19. Um óbito em 4/2/19. Total de cães abrigados na fazenda: 10.
Gatos Adultos: 7; filhotes: 3. 1 gata prenhe e 1 gata que sofreu aborto foram encaminhadas para a MedVet; 1 gato veio a óbito no dia 2/2, e outro dia 5/2; 7 gatos foram encaminhados para lar temporário; 1 gata com suspeita de câncer de mama foi encaminhada para a Clínica Gutierrez para exames.
Pássaros Canarinhos: 7; trinca-ferros: 5; azulão: 1; tico-tico: 1. 1 filhote não identificado foi a óbito em 5/2/19. Os demais estavam em bom estado de saúde. Total de pássaros assistidos e abrigados na fazenda até 25/1/19: 14.
Répteis Cágado: 1; serpente: 1. Avaliados em bom estado e encaminhados para soltura.
Mamíferos silvestres Ouriço encaminhado para soltura: 1.
Aves domésticas Patos: 4; galos: 3; galinhas: 10. 1 galo e 1 pato foram encaminhados para o Zoovet e o restante em bom estado de saúde. Total de aves domésticas assistidas até 25/1/19: 17. Total de aves domésticas abrigadas na fazenda: 15.
Equinos Cavalos/éguas: 15. Um animal com ferida na pata e outro com um problema ocular foram tratados. Nada grave. Total de equinos assistidos até 25/1/19: 15. Total de equinos abrigados na fazenda: 15.
Espécies animais resgatadas em Brumadinho após o rompimento da barragem no dia 25/1/2019, segundo o levantamento realizado na fazenda de abrigo no dia 6/2/2019

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À esquerda, o biólogo Pablo Pezoa, contratado pela mineradora, e o médico-veterinário Eutálio Pimenta, da UFMG, voluntário responsável pela anestesia de grandes animais resgatados nas áreas atingidas. À direita, resgatistas com cão farejador. Créditos: Vania de Fátima Plaza Nunes

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Grandes desafios se apresentaram e requereram medidas complexas para o resgate de animais de grande porte, como bovinos e equinos, e de pequeno porte, como aves, cães e gatos.

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Equipe de trabalho voluntário da UFMG na fazenda de acolhimento, liderada pela médica-veterinária Cristina Malmann. Créditos: Vania de Fátima Plaza Nunes

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Foi fundamental estabelecer um eficiente programa de análise de risco, pois, nessas situações, pessoas se comportam de forma inadequada, oferecendo riscos aos voluntários e resgatistas treinados e a outros animais em áreas do entorno. Assim sendo, foi necessário que se adotassem medidas eficientes para garantir resgates seguros. A pesquisa de enfermidades infecciosas de caráter zoonótico, doenças espécie-específicas e controle parasitário, além de um completo exame e assistência clínica e nutricional acompanhada de manejo humanitário e etológico, são fatores centrais na condução das ações que deverão ser levadas a efeito no médio e no longo prazo.

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À esquerda, reunião de resgatistas voluntários e de órgãos oficiais na sede de resgate de fauna. À direita, alunas da UFMG supervisionadas discutindo casos e protocolos. Créditos: Vania de Fátima Plaza Nunes

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Considerações finais

A iniciativa proposta por médicos-veterinários em Minas Gerais, que conta com o apoio do Ministério Público na área ambiental do estado, tem sido fundamental no resgate e no encaminhamento dos animais afetados. O modelo de ação imediata e emergencial criado pela Brigada Animal deveria ser cada vez mais estruturado e compartilhado nacionalmente com os demais colegas médicos-veterinários e voluntários incorporados nessas iniciativas – para que se possam estabelecer objetivos e diretrizes no sentido definir ações e de angariar os recursos necessários para o treinamento das equipes e o fornecimento de apoio técnico e psicológico correto indispensáveis em situações idênticas ou semelhantes que possam ocorrer no futuro.

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Os animais resgatados logo após o desastre foram encaminhados à fazenda destinada à recepção e aos primeiros cuidados. Cães e gatos adultos, idosos e filhotes foram alojados temporariamente em canis móveis após avaliação clínica e prescrição, e mantidos em observação. Créditos: Vania de Fátima Plaza Nunes

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Médicos-veterinários Artur Nascimento, Carla Sassi, Sérvio Reis e Vania de Fátima Plaza Nunes, envolvidos nos trabalhos de resgate. Créditos: Vania de Fátima Plaza Nunes

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Referências

1-VIEIRA, J. F. M. Medicina veterinária de desastres e catástrofes: contributo para a extensão do Plano Municipal de Emergência de Proteção Civil de Lisboa aos animais de companhia. 2016. 91 f. Dissertação (Mestrado em Medicina Veterinária) – Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2016.

2-KREJSA, P. Report on early warning for technological hazards. Geneva: IDNDR Secretariat, 1997. 31 p. Disponível em: <http://www.unisdr.org/2006/ppew/whats-ew/pdf/report-on-ew-for-technological-hazards.pdf>.  Acessado em 7 de fevereiro de 2019.

3-CALIXTO, B. Desastre em Mariana ameaça quase 400 espécies de animais. Revista Época, 2015. Disponível em: <https://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/blog-do-planeta/noticia/2015/12/desastre-em-mariana-ameaca-quase-400-especies-de-animais.html>. Acessado em 7 de fevereiro de 2019.

4-BASTOS, A. L. ; SASSI, C. ; SOUSA, M. G. ; BIONDO, A. W. ; BAZZETTO, A. V. P. A tragédia de Mariana, MG, relembra a importância da medicina veterinária de desastres. Clínica Veterinária, ano XXI, v. 120, p. 24-30, 2016. ISSN: 1413-571X.

5-United Nations Office For Disaster Risk Reduction. Local Government Profile: Brumadinho (Minas Gerais) – Brazil. Disponível em: <https://www.unisdr.org/campaign/resilientcities/Home/cityprofile/City%20Profile%20Of%20Brumadinho/?id=4395>.  Acessado em 7 de fevereiro de 2019.